15 de agosto de 2021

Eu me tornei

 


(Sociedade dos poetas mortos - 1990)


A imagem da capa de "Feliz Ano Velho", de Marcelo Rubens Paiva, pairava sobre o telão. Era uma quente noite de verão, logo no início de março, daquelas que fazem essa estação se despedir em grande estilo. A classe estava abarrotada de aluno, um clássico de começo de ano em um cursinho popular. O ventilador, ou o que restou dele, não dava conta de aliviar o mormaço de dentro da sala. A ferrugem das carteiras, as bordas quebradas da lousa e os estilhaços da janela pareciam acentuar ainda mais o calor do nosso cenário.

Mesmo assim, alguns alunos se dispuseram a participar da reflexão a que eu lhes convidara: se você tivesse que se apresentar não como pessoa, mas como um livro, que livro você seria? Eu comecei me apresentando para eles como "Feliz Ano Velho", leitura que chegou até mim num dos momentos mais delicados de minha vida, por meio da mão de outra pessoa, e que me deu forças para atravessar as barreiras, muitas vezes intransponíveis, da doença. Uma de minhas alunas, então, levantou a mão e começou a falar.

Lembro-me claramente dos seus olhinhos apertados nos contando a sua luta contra a depressão. Já me esqueci de qual livro ela era (ou talvez meu inconsciente tenha tomado à frente naquela hora), mas jamais me esqueci da coragem daquela menina compartilhando, com uma sala com mais de quarenta pessoas, como era a sua luta. O alívio que se cortar causava, a tentação de findar a própria vida, os dias cinzas. Logo, as lágrimas vieram. E tudo que pude fazer para acolhê-la foi caminhar em direção à sua carteira e lhe estender a mão. Ela me segurou forte, mas também agradecida.

Lá do fundo, outro aluno se manifestou. Disse conhecer exatamente o mesmo enfrentamento. Inclusive, compartilhou conosco que as tatuagens feitas ao longo da vida ocuparam a função de lhe proporcionar o alívio que a dor de se cortar causava. E num misto de extrema admiração pela coragem desses meus alunos e de coração agradecido, a conexão que criamos ali foi minha força propulsora que me levou até o fim do ano, para vê-los, mais tarde, tomando seus devidos lugares nas universidades deste país.

Fiquei pensando em como aquele momento foi fundamental para despertar o que havia de melhor em mim.   

No começo do ano seguinte, naquela passagem fatídica da primeira para a segunda fase dos vestibulares, meus alunos se reclusavam no famoso bitolódromo da nossa universidade. Passavam dias e noites a perder de vista lá. E mais do que um local solitário de estudo, parecia-me que eles queriam estar fisicamente lá, como que se estivessem, desde aquele momento, tomando posse do lugar que seria deles um dia. Entre as idas e vindas dos nossos estudos, sempre chegava algo para me chamar a atenção. Uma foto no grupo com a frase "Wagner não dá nota 10" escrita na lousa do fundo. Um apelido de coach quando cometi o deslize de usar a palavra mindset num plantão. Mas, nada disso se sobrepôs à demonstração que recebi pessoalmente.

"Se eu passar no vestibular neste ano, prometo que te dou um abraço". Ganhei essa frase despretensiosamente, no final de uma conversa no banheiro enquanto lavava as mãos. Nem me lembro do que respondi (ou, talvez, mais uma vez o inconsciente agiu), mas me lembro da justificativa que veio em seguida. "E olha que nem meus pais ganham um abraço meu há muito tempo". Ali, entendi quão valiosa era aquela promessa e tomei dimensão da importância de que o meu trabalho desse certo. Assim como deu.  

Fiquei pensando em como a promessa de um abraço pode mudar tudo.

Contudo, nem sempre todos alcançam o seu sonho de aprovação. É gostoso, sim, reencontrar algumas carinhas conhecidas ano a ano, mas mais gostoso ainda é quando essas carinhas viram lembrança e vão se tornar presença lá no ensino superior. Dessa vez, o que me tocou veio justamente de um lugar onde não teve aprovação. Mas, lá encontrei algo tão valioso quanto. "Eu vim de lá, eu vim de lá, pequenininho. Mas eu vim de lá, pequenininho. Alguém me avisou pra pisar neste chão devagarinho... Obrigada, Wagner, porque você me ajudou a pisar devagarinho".

Essa minha aluna canta tão bem. E a minha surpresa não foi só receber uma mensagem que, do nada, torna-se cantada, mas também por entender que a gratidão não reside apenas na aprovação, ela também está presente na trajetória. Algo acontece ao longo do percurso, andando devagarinho até o dia do juízo final que impera sobre os alunos que têm seu futuro colocado em jogo em cinco horas de prova. O ser humano abre a sua mente, enxerga além, transforma-se. Como ouvi de outra aluna em outra ocasião, "professor Wagner, hoje estou triste porque descobri na aula de ontem que o meu trabalho é um tipo de subemprego".

Fiquei pensando em como é importante ensinar a andar devagarinho.

A presença da gratidão no percurso, que é tão importante quanto o final dele. A presença da gratidão no final, que na verdade é só o começo para os meus alunos. Tudo isso marca, porém a maior marca é aquela que fica para sempre. "Já assistiu um filme chamado Sociedade dos Poetas Mortos?". Assim como uma frase cantada inesperada ou a repentina oferta de um abraço, essa pergunta me surgiu de repente no meio de uma conversa. E eu havia cometido o pecado de não ter visto o filme ainda, mas disse adorar o protagonista. "Quando eu assisti esse filme, lembrei de você e pensei: o Wagner passa uma mensagem parecida sobre o conhecimento".

Um tempo depois, já envolto pelo hábito trazido pela pandemia de assistir a diferentes filmes às sextas-feiras à noite, finalmente vi o que era o tal grupo de alunos que se denominavam como poetas mortos. Ali, eu entendi a grandeza da alusão feita pelo meu aluno. E, hoje, sempre que abro o ano letivo de minhas aulas, coloco a imagem dos alunos atrevidos em pé nas suas carteiras e convido, aqueles que quiserem, a contarem comigo para subirem nas suas próprias mesas.

Fiquei pensando em como é necessário subir nas nossas carteiras. Fiquei pensando, refletindo, sentindo. Fiquei. E então me tornei.


13 de fevereiro de 2021

O choro de Lucineia

 


Mulher Chorando (1947) - Candido Portinari


Lucineia estava encostada na porta da sala da simples casa onde passei minha infância. Muitas vezes chamada de "barracão", a casa tinha um formato horizontal, teto baixo, um grande quintal de terra e água de poço artesiano. Ficava de frente para um verde e extenso pasto, que integrava uma paisagem sempre tomada por um céu azul claro límpido e montanhas com coqueiros. Era para essa vista que Lucineia olhava, silenciosa, de costas para o interior da casa.

Naquela ocasião, eu com meus apenas sete anos de idade, fui tomado pela curiosidade ao vê-la assim. Junto com meus dois primos, também crianças, fui me achegando sorrateiro perto dela, como se fosse espiar algo muito sigiloso. Contornei as grandes e bonitas pernas que ela tinha, que o shorts curto que ela usava sempre deixava à mostra, e me lembro claramente do meu olhar indo de baixo a cima, fazendo-me enxergar seus olhos marejados e as suas mãos repousadas na barriga, como se acalentasse o filho que ela estava esperando. 

Por que ela está chorando? Foi o que a minha curiosidade de criança me trouxe à mente. A mesma curiosidade que desde sempre me fez criar histórias, mundos e inúmeros personagens também me dera sensibilidade para entender que havia algo ali, naquele choro. Algo a mais, que, obviamente, eu não fora capaz de entender à época, mas que hoje me retorna à mente com um significado muito profundo daquele choro. Talvez, retorne-me mais ao coração do que à mente, na verdade.

Lucineia era a moça que ajudava minha tia, irmã de minha mãe, nos afazeres da casa. Ou a "empregada doméstica", para deixar de lado o eufemismo. Nos anos 90, minha tia ainda tinha um padrão de vida que lhe permitia esse tipo de ajuda e, por estar com a casa em reforma, estava passando um tempo na minha casa. Junto com ela, então, foi Lucineia. Jovem e pobre, carregando um filho, solteira, no Brasil dos anos 90. Talvez, nem ela mesma entendesse o desafio que teria pela frente enquanto admirava a paisagem da zona rural onde eu e minha família morávamos, mas certamente ela o sentia, e as suas lágrimas falavam por ela.

Interessante frisar que para eu chegar ao entendimento suficiente que me permitisse olhar dessa forma para essa cena (e esse cenário) que descrevi até aqui, foram necessários mais de vinte anos. E, muito certamente, eu apenas tenha ressignificado o olhar curioso de uma criança de mente fértil, pois jamais serei capaz de alcançar o sentimento que as lágrimas de Lucineia carregavam. Como um homem, branco, pertencente (hoje) a uma condição de vida favorável, eu posso imaginar esse sentimento, mas jamais terei a dádiva (ou a dor) de senti-lo.

Assim como jamais terei a dádiva de ser capaz de sentir o que todas as mulheres que integram a minha vida já sentiram, um dia, ao longo de sua trajetória. Atrás de mim, na minha história, gravadas no percurso da minha existência, estão mulheres da minha família que foram as responsáveis por me ajudar a alcançar a vida que tenho hoje. Outras pessoas também, é claro, inclusive homens, mas nenhuma delas tão significativas quanto essas mulheres.

Essa conclusão levou muito tempo para ser elaborada. Não se trata de um desses clichês prontos tão disponíveis por aí atualmente, mas sim de uma conclusão de vida. E mais do que uma conclusão racional, trata-se de algo que eu sinto (sentir, no mais profundo poder que esse verbo carrega consigo). Aos sete anos de idade, eu não era capaz de entender as lágrimas de Lucineia, mas por algum motivo elas me voltam à mente (ou ao coração) depois de eu ter trilhado uma extensa caminhada.

Essas lágrimas, silenciosas, doloridas e amedrontadas já estiveram no rosto de minha mãe um dia, que, grávida aos quatorze anos, também não podia imaginar o que enfrentaria em sua trajetória. Também estiveram no rosto de minha avó paterna, que sobreviveu para criar três filhos e sustentar toda uma família, inclusive dando luz ao meu pai em uma garagem. Estiveram, ainda, no rosto de minha avó materna, que hoje continua carregando em seu corpo e em sua alma o peso de uma vida marcada pela desordem e pela falta de amor.

E, apesar das lágrimas, essas mulheres foram capazes de enxugar o seu rosto e seguir adiante. Da forma como foi possível e com as limitações que tinham, mas seguiram. Diante da possibilidade de escolher o abandono, elas optaram pelo acolhimento. Diante da possível desistência, bancaram o enfrentamento. E quando estiveram cara a cara com a morte, quando poderiam, sim, prezar pela sua vida e pelo seu próprio corpo em vez de trazer mais um ser humano ao mundo, elas decidiram se arriscar. Colocaram seu sangue, suas forças e até o seu mais profundo suspiro para que outros seres humanos pudessem viver, pudessem construir suas vidas e, vejam só, pudessem até se voltar contra elas, em algum momento da vida. 

Ora, para conseguir olhar para essas mulheres e enxergar isso tudo, foi necessário que eu me despisse, ao longo do meu caminhar, de toda mágoa, ressentimento e até ódio que a vida, infelizmente, leva-nos a carregar. Não importam os motivos, não há culpados, pois o mal simplesmente acontece e faz parte da vida. E quando fui capaz de deixar o amor invadir meu coração e diluir todo o natural ressentimento trazido pela vida, pude olhar verdadeiramente para essas mulheres. Eu pude, então, me lembrar do choro de Lucineia.


Imagem disponível em: https://artsandculture.google.com/asset/woman-crying/wgGMDt2ERUzg3g?hl=pt-br. Acesso em 13 fev. 2021.





29 de outubro de 2017

Somos treinados

Do fotojornalista Nick Ut / AP. Em 8 de junho de 1972, Kim Phuc, vietnamita de 9 anos, chora após ter parte do corpo queimado em um bombardeio aéreo de napalm, em um vilarejo no Vietnã. (O Globo)


“Antes, quando ele morreu, eu ia todo dia, de manhã e à tarde. Na mesma semana em que ele morreu, mandei fazer um monte de foto dele e espalhei pela casa inteira. Até que um dia surtei. Eu ficava segurando, segurando... Até que quebrei tudo que tinha dentro da cozinha, mandava tudo pro quintal.

‘Calma, calma! ’, ‘calma por quê? Por que eu tenho que ficar calma? Perder filho é fácil?’. Eu chorava, tremia, tremia... Falei pra moça (no cemitério), ‘se eu não voltar até quinze para as cinco, você me chama’. ‘O que aconteceu? ’, ela me perguntou, e eu respondi ‘a senhora já sabe’. Ela disse ‘ta bom, filha. Vai, desabafa seu peito, seu coração, porque você merece isso’.

Ali eu deitei na terra, porque agora que estou fazendo o túmulo, e raspava, raspava a unha naquela terra! Não me conformava que embaixo daquela terra estava o meu filho. Ali, foi a hora que eu dei uma explosão, dos três anos que eu segurei. E orava ‘Senhor, foi da sua vontade, mas trabalha no meu coração, não vira teu rosto para mim não, Senhor’”.

Este relato me foi contado por uma forte mulher chamada Alessandra e fez parte do livro-reportagem "Vida Além do Câncer". Projeto de conclusão do curso de jornalismo meu e de mais duas amigas, as jornalistas que muito admiro Talita e Camila, este livro contou histórias de pacientes do Centro Infantil Boldrini em três perspectivas: um que sobreviveu ao câncer, um que estava passando pelo tratamento, e um que morreu com a doença. 

E como é possível perceber pelas palavras de Alessandra que aqui reproduzi, o caso do seu filho Sansão, que integrou o nosso livro, ilustrava a situação de um paciente que não havia sobrevivido ao câncer. O fato é que o forte trecho da história aqui reproduzido, apesar de ter aberto o capítulo do livro que contava a experiência de Sansão, não nos foi contado no começo da conversa com Alessandra, mas sim ao final dela. 

Entretanto, após entrevistar a nossa fonte, Alessandra, digerir tudo que ouvimos, decupar o áudio de sua entrevista (processo em que o jornalista transcreve a gravação de sua entrevista para o papel) e reler tudo aquilo, entendi que este trecho não poderia ficar para o final, ele tinha de abrir o capítulo. Dessa forma, teríamos um clímax logo no começo da história, que, além de prender o leitor logo de cara, já deixaria claro para ele que a história a ser lida tratava do caso da criança falecida. Ou seja, seria perfeito!

Pois bem, eu tinha às minhas mãos a triste, delicada e respeitosa história de uma criança que não resistira ao câncer, confidenciada por meio da dor de sua mãe, que recebera três estranhos em sua casa da forma mais afetuosa possível para falar da maior perda de toda sua vida, e ainda assim eu tinha de olhar para aquilo como material de trabalho.

Sem o natural envolvimento humano e emocional à frente, precisei tratar todo aquele conteúdo apenas como texto e colocá-lo em uma estrutura narrativa que cumprisse sua função como o capítulo de um livro. E a "cena" de Alessandra arranhando a terra do chão onde seu filho estava enterrado, momento em que sua dor finalmente explodira, tinha de abrir o capítulo.

E o final? Bem, para encerrar o capítulo reservei a conversa final entre Alessandra e Sansão no leito do hospital, quando, sem nem poder mais falar, Sansão entrava em um acordo com sua mãe que era o momento de partir. Apenas grunhindo, ele travou um diálogo final com Alessandra antes de morrer, cena esta que evitarei também reproduzir aqui porque me faria, hoje, chorar por um bom tempo. Mas, a fala "ele descansou, mãe", que Alessandra ouvira do médico, foi o texto que fechou o capítulo, embora não tenha sido a última coisa que Alessandra nos contou. 

Esta experiência é apenas uma das muitas que já tive na qual fica claro como o exercício da profissão de jornalista precisa ser extremamente técnico. Por mais que se coloque alma e verdade no trabalho jornalístico, é a técnica empregada a responsável por permitir a entrega de um produto final perfeito. Por mais difícil, envolvente ou dura que seja a situação ou história a ser contada, há de se ter o distanciamento necessário para tratar aquilo como material do nosso trabalho. Não se trata de inspiração ou potência dramática da história, mas sim de técnica.

Em outra ocasião vivida por mim em que isso também ficou evidente, precisei escrever toda a história de uma companhia de teatro para produzir o conteúdo de seu novo site e, posteriormente, efetuar uma ação de assessoria de imprensa. Todo o processo jornalístico para isso foi feito a distância, pois o cliente era de outra cidade. Cliente este, aliás, que talvez tenha sido o mais peculiar que já tive dentre os muitos já atendidos: um palhaço. 

Lembro-me até hoje das palavras dele quando respondi que não poderia ir até sua cidade para participar do evento sobre o qual trabalhei na ação de assessoria: "Finalizamos a troca? Era isso aí? Não ter havido contato - além das letras - mais aprofundado era a ideia original e final? Escreveste sobre minha vida e trabalho conseguindo não se envolver, cara. Te admiro, pois me aponta algo de que não sei fazer". 

Ora, preciso confidenciar, aqui, o quanto me toca o coração ler algo com tamanha verdade e expressão. Mas, eu tinha outros compromissos profissionais na época, a cidade do cliente era distante e o custo da viagem não compensaria o valor, não tão expressivo, que haviam me pagado pelo trabalho. O meu papel como jornalista estava cumprido, a viagem e o contato, do qual o palhaço sentira falta, não aconteceriam. 

Tal cenário da profissão de jornalista me remete a uma fala de Ana Paula Padrão em uma entrevista acerca do programa apresentado por ela atualmente, o Master Chef. Ao ser questionada sobre como encarava as situações do reality show, Ana Paula falou sobre como era necessário ter um distanciamento do envolvimento emocional com os candidatos para ser capaz de cumprir seu papel de conduzir a narrativa do programa.

E uma fala dela me marcou em especial: "nós, jornalistas, somos treinados para não nos envolver". Mesmo admirando tanto o trabalho dela e toda bagagem jornalística que ela traz consigo, incluindo sua vereda atual pelo entretenimento, não esperava me identificar tanto com uma verdade dita por uma jornalista como ela (repórter, do meio TV, apresentadora de bancada e agora no entretenimento), tão distante do tipo de atuação que tenho nos meus dez anos de carreira. "Somos treinados". 

De fato, nós, jornalistas, somos treinados a não nos envolver. Por outro lado, o exercício de nossa profissão, como qualquer outro, deixa marcas. É impossível não absorver algo para si de todas as histórias contadas pelos diferentes tipos de personagens e fontes que atravessam nosso caminho. Nós, jornalistas, carregamos em nossa alma um pouco de cada história contada pelos seres humanos que entrevistamos. 

Da mesma forma, caro leitor, tudo que teci até aqui pode parecer se resumir apenas à profissão de jornalista, mas, na verdade, tem a ver com a vida em seu amplo aspecto. Afinal, o jornalismo é a vida em todas as suas nuances, e este distanciamento, tão presente em nossa técnica, tem a ver com a vida de todos nós.

Pois veja, não é verdade que você, em seu cotidiano, também não atravessa a vida de várias pessoas? Elas também não te contam suas histórias? Muitas vezes nem por palavras, mas por gestos, olhares ou atitudes, as pessoas ao seu redor, integrantes do seu dia a dia, também carregam uma história consigo, porém nem sempre são ouvidas. 

Isso se faz verdade na pessoa apreensiva que se senta ao seu lado no ônibus, mas com quem nem há um "bom dia"; com o estranho que olha sorrindo para você na fila do banco, mas de quem você nem saberá o nome; no chefe que te recebe em sua mesa ao final do expediente para tratar de um assunto com uma expressão de tristeza, com quem você fala, mas sequer pergunta se está tudo bem; do ser humano com quem você se dispõe a transar ao final da balada ou de uma caça no aplicativo, mas cuja história de vida você nem sonhará em descobrir após o gozo.

Simplesmente porque somos treinados. Todos nós. Desde pequenos quando ouvimos de nossa mãe para não falarmos com estranhos, até quando já adultos seguimos à risca a etiqueta de não prolongar a resposta ao "tudo bem?" do rápido cumprimento cotidiano. Todos sabemos que não devemos falar, tampouco perguntar, pois a vida precisa seguir sem os percalços da inveja e curiosidade alheia, porque não se há tempo ou porque a intimidade pode ser uma inimiga. 

Os motivos são vários, as oportunidades também, mas somos treinados. A vida nos treina assim, as pessoas também. O jornalista, então, apenas tem isso como ossos do ofício. 

Contudo, você também há de carregar contigo as histórias que te marcaram, que tocaram sua alma e coração. E para cada uma delas, meu convite, como jornalista e ser humano, é que você abra mais seus olhos e ouvidos, para ser capaz de, assim, treinar-se a percebê-las. 


23 de julho de 2017

Por quem você se dobra?



"Eu era muito cobrado por não dizer 'eu te amo' para ele. Mas, é que falar isso tinha um peso tão importante para mim que eu sempre escolhia momentos especiais para dizê-lo. Então, agora, eu procuro dizer mais 'eu te amo' para meu novo namorado, sempre busco momentos para isso".

Os claros olhos da pessoa querida que me contava essa história se mostraram sensíveis naquele momento. Com uma xícara de café à mão, no fim do expediente daquele dia, pude sentir, muito profundamente pelo verde de seus olhos e no carinho de sua fala, uma notável preocupação em fazer diferente, desta vez, com um novo relacionamento, baseando-se na experiência que ela havia tido com o ex-marido.

Do outro lado, enquanto ouvia aquela história como quem recebia um presente precioso numa tarde de sexta-feira, estava eu, também com uma xícara de café à mão, perguntando-me em pensamento o quanto, de fato, aquela pessoa queria mesmo dizer tantos "eu te amo" ao novo namorado. Afinal, o ímpeto de expressar mais o seu amor fora despertado pelo atual relacionamento ou pela experiência com o anterior?

Pois é, nem todas as nossas atitudes, por vezes, nascem de nós mesmos. Várias delas são despertadas por motivações externas a nós. Uma pessoa, um trauma, um aprendizado, uma nova situação. São muitas as origens de algumas de nossas atitudes, e nem sempre estamos prontos a reconhecer isso. Se eu tivesse exposto, por exemplo, a minha pergunta em pensamento, a querida pessoa que me confidenciava a nova frequência do seu "eu te amo" certamente discordaria. Ora, será fácil admitir que nem tudo que vem de nós nasce em nós?

Caminhando por esta reflexão enquanto lavava a xícara do café após o fim daquela conversa (a empregada odiaria chegar na segunda-feira de manhã e ver duas xícaras largadas por nós ali na pia), lembrei-me de outra situação que me trouxe a mesma questão. Quando estávamos eu e uma amiga no trabalho comemorando uma aprovação com "nota 10" de um cliente.

Ao lermos o feedback dele, abraçamo-nos e, escandalosos que somos, comemoramos de forma contida, no exato momento em que nosso chefe passava pelo corredor e, vendo aquela cena, franziu a testa, levou o dedo à boca e fez um "shhh!". "Gente, a dona da agência está aí". Por mais desapropriada que fosse aquela repreensão a dois subordinados no contexto e no ambiente de uma agência de comunicação, não foi exatamente isso que me chamou a atenção. Mas, sim, ver meu chefe fazendo aquilo. 

A atitude automática dele diante da comemoração pela aprovação de uma campanha enviada por um cliente, o categórico "shhh!" que lembrou um diretor sisudo de escola do ensino fundamental, a roupa social formal que ele vestia. Tudo ali não parecia ser dele. Lembro-me de quando eu o conheci há dois anos atrás, em sua chegada à agência, e jamais imaginaria vê-lo naquela roupagem algum dia. Porém, exigência após exigência dos "donos" da agência, naquilo ele se resultou. 

Deixando os detalhes do campo profissional ou pessoal de lado, a verdade é que a vida nos transforma ao longo do tempo. E mais, ela exige que nos transformemos. Conviver com um amigo completamente diferente de você (e a diferença é uma dádiva!) é um desafio para o qual a mudança é necessária. Manter um casamento de anos demanda adaptações, concessões e, também, mudanças. A cada emprego e cargo que ocupamos nos pedem mais novas atitudes, e lá vamos nós nos transformarmos mais uma vez.

Esta maleabilidade que nos permite encaixar pelas diferentes constâncias da vida é essencial. E também positiva, afinal, aprendemos tanto com ela, abrimos nossas barreiras. Quando pensamos que já fomos tudo que tínhamos para ser, abrimos uma nova caixa e, de repente, lá está um novo "eu". No entanto, até que ponto tal maleabilidade pode nos transformar? Será que devemos nos permitir ser dobrados ao máximo possível?

Tal realidade não está apenas nos grandes atos, nos movimentos apenas expressivos. Mas, também nas pequenas atitudes. Outro dia, eu mesmo, ao me levantar da cadeira de minha escrivaninha em casa em plena madrugada para ir dormir, peguei-me colocando a cadeira de volta em seu lugar. Olhei de longe, então, e vi a cadeira encostada na escrivaninha, um detalhe que não veio de mim, mas que aprendi ao receber as engraçadas repreensões de uma colega de trabalho toda vez que me levantava para ir embora. "Vai deixar o rabo para trás de novo?".

Do mesmo modo, estes dias notei que minha cama permanece encostada na parede já faz uns meses, algo que nunca mais mudei após receber uma pessoa em casa que, ao se deitar nela, disse-me que seria muito melhor que a cama estivesse perto da parede, e não no meio do quarto. Foi impressionante como aquela mudança de alguns centímetros para a esquerda deixou o deitar muito mais aconchegante, um aconchego que permanece comigo até agora.

Uma cama, uma cadeira, um "eu te amo". Não importa de que tamanho e qual a relevância do que está em nós, mas não vem de nós, pois a verdade é que nos tornamos a soma de tudo aquilo e de todos aqueles que passam por nós. Muita coisa fica, bastante coisa vai embora, porém quem permite o ficar ou o partir somos nós, é a pessoa que recebe tantos e constantes pedidos de adaptações, de maleabilidade.

Contudo, há de se ter respeito pela sua essência. Esta, sim, não deve ser mudada. A questão "quem sou eu, na verdade?" nunca deve sair de foco. Tudo bem pedirem que eu me adapte, mas não me peçam para ser alguém que eu não sou.

Afinal, diria que este é o lado negro das constantes necessidades de mudança que a vida nos traz: destruir de forma impiedosa a nossa essência central, em prol dos meros interesses de tudo que é externo - um relacionamento, um emprego, uma amizade - coisas estas que, notem, sempre vão embora, cedo ou tarde. E aí, o que ficará e restará de nós? Pois, depois que elas se vão, a única coisa que não se vai é a nossa essência. E será que ela, sim, foi respeitada como deveria?  

Mudar ou não mudar, respeitar-se ou não, ceder ou insistir... Decisão delicada, quase que como duas faces de uma mesma carta. Algo que sempre estará em nossas próprias mãos. E a escolha, no fim das contas, sempre consistirá em saber por quem, ou o que, vale a pena se dobrar. E você, por quem você se dobra?