24 de janeiro de 2015

O preço do amor ao próximo



"E aí, vocês já deram o dinheiro pro bolão da virada?", disse o animado rapaz que entrara de repente na sala interrompendo o silêncio dos comunicólogos concentrados em seus computadores. Rapidamente, o barulho e a movimentação gerados pela capciosa pergunta botaram as pessoas a fazerem piadas e vislumbrarem possibilidades do que fariam se ganhassem o tal bolão. "Ta valendo XXX milhões!", justificou o sonhador com um sorriso que eu não o via carregar no dia a dia. Virando-se para mim, após todos darem seus trocos, perguntou, "e você? Já deu o seu?". "Não, obrigado. Eu não participo", tentei ser gentil, para não ser exilado numa sala para seres anormais. "Sério?! Por quê?". "Não acredito nesses jogos", expliquei com um sorriso forçado e sem graça.

Essa cena aconteceu logo no final de um ano. Note que eu não me lembro a quantia em jogo, mas sei que era um valor absurdamente alto. Na verdade, não prestei atenção ao valor, mas à reação das pessoas ao ouvi-lo. Achei curioso, sobretudo, o brilho nos olhos e o sorriso do camarada que estava organizando o bolão ao falar sobre o prêmio. Tão curioso quanto foi a reação imediata das pessoas. Em outra ocasião, com quase esse mesmo grupo de pessoas, lembro-me que um certo colega passou pedindo ajuda para uma ação social, ajuda essa que não envolvia doação, mas um esforço, uns minutos de atenção. "Agora não posso. Desculpe". "To totalmente sem tempo, se eu parar o que to fazendo agora me ferro". "Ai, depende. Do que você precisa?". Os que, com muito esforço, aceitaram participar não deram sinais de sorrisos, tampouco de brilho nos olhos.

Dois pesos e duas medidas nessa comparação? Sim, pode ser. Mas, fatos simples como esses do nosso cotidiano são pequenas provas que mostram o que é "valor" para nossa sociedade. A dinâmica da vida, ditada pelas relações de trabalho e de consumo, impulsiona a importância do bem material, daquilo que se pode mensurar. Parece que estamos o tempo todo correndo atrás de uma grande cenoura que nos é imposta, em busca da concretização do "eu cheguei lá", fazendo com que atropelemos tudo que for necessário para continuar nessa corrida. Assim, certos valores, como fraternidade e solidariedade, vão perdendo o sentido na hierarquia das prioridades.

Ora, então "dinheiro não compra felicidade". Mentira! Compra, sim. E ainda a multiplica. O recurso monetário permite acesso a uma série de elementos capazes de garantir uma excelente qualidade de vida: alimentação diferenciada, moradia digna, serviços de saúde que funcionam, transporte independente do oferecido ao público, um bom ensino, lazer enriquecedor. Isso só para abranger mais as necessidades básicas, nada de luxo.

Tais condições, é verdade, são uma realidade bastante característica do nosso país. É incompreensível saber que pessoas morrem em corredores de hospitais, enquanto temos um "impostômetro" escancarando valores da ordem de trilhão na nossa cara. Não dá para entender, por mais esforço que se faça em condescender com a gestão pública, como fomos capazes de mover tanto dinheiro para a infraestrutura da Copa do Mundo, ao passo que nossas escolas caem aos pedaços. Mais difícil ainda é aceitar que tantas tristezas só acontecem simplesmente porque a direção de nosso país está nas mãos de pessoas não preocupadas com o bem da população, responsável por colocá-las onde estão, mas por serem preocupadas em como garantir os próprios interesses: poder e dinheiro por quanto tempo for possível. Trata-se da hierarquia dos nossos valores. 

Porém, esse modus operandi não determina apenas a vergonhosa corrupção e dominância social do Brasil. Infelizmente, é uma realidade em todo o mundo. Neste mês, a ONG britânica Oxfam divulgou uma previsão, levando em conta o Fórum Econômico Mundial, de que, em 2016, o 1% mais rico da população mundial terá mais dinheiro do que os outros 99% juntos. Isso significa que cerca de 37 milhões de pessoas deterão, sozinhas, mais da metade dos bens e patrimônios existentes no mundo. A outra metade que restar, então, terá de ser dividida entre os bilhões de pessoas que compõem os 99%.

Pense, o que justifica tal divisão? Há indivíduos, ferozes capitalistas cuja alma de empreendedor almeja seu "primeiro milhão", que certamente responderiam que tal realidade é justa, oriunda de um processo que levou a essa concentração. Afinal, é natural ver aqueles que sabem "fazer dinheiro" enriquecerem e multiplicarem seus bens. Pois é, o problema aí está no fato desse não ser um crescimento sustentável, que beneficia a população como um todo. Determinado processo de enriquecimento, mérito do 1% de massa cinzenta agraciada com pó de ouro, beneficia apenas, e tão somente, aqueles que estão por cima. Quem está embaixo continuará lá.

Isso acontece principalmente porque não há divisão. E não, não estou me referindo a uma política pública fundamentada em Robin Hood. Mas à capacidade de dividir conhecimento, as condições de formar outras pessoas tão capazes de também construir e multiplicar bens. E me refiro a essa ação como "capacidade" porque se trata de uma habilidade que pouquíssimos possuem, pois envolve formar pessoas, algo que o nosso mundo não sabe fazer.

Empregar pessoas? Ilusão! O ato de "dar trabalho" a funcionários e "colaboradores" que poderão atuar nas indústrias e organizações não passa de usar uma massa de pessoas que darão duro para enriquecer uma pequena parcela que se mantém na "nata". O máximo que essa "base da pirâmide" ganhará com seu trabalho é um salário, apenas isso. E salário dá condições de sobrevivência, para, quem sabe, ter os elementos de uma boa qualidade de vida que citei anteriormente. 

Contudo, não são apenas as pessoas que sofrem com isso. Esse acúmulo de riqueza não sustentável também dá sinais na própria natureza. Nesta semana, o Boletim de Cientistas Atômicos (BAS) adiantou o "Relógio do Apocalipse" em dois minutos, uma forma de alerta sobre nossas condições globais. Agora, marcando três para a meia-noite no relógio, o BAS criticou os líderes globais em seu comunicado: "falharam em agir na velocidade ou escala requerida para proteger os cidadãos de uma potencial catástrofe". Ou seja, o motivo do alerta é o risco de nossa civilização culminar diante das tragédias climáticas. Assim, vemos que somos capazes de arrancar riquezas da natureza, mas não sabemos preservá-la.

Acerca desse quadro eu não consigo nutrir outro sentimento senão o pessimista. Você consegue ver alguma luz? Confesso que não consigo porque, observando os pequenos fatos do nosso cotidiano, fica nítido que a essência dessa dinâmica materialista já está impregnada em nossas relações. Está infiltrada, fundida, em cada um de nós. Já se tornou parte de nós. Dia a dia a reforçamos em nossas relações, trabalho e comportamento. Afinal, dependemos dela. Todos queremos uma vida melhor. Todos querem "chegar lá", ainda que seja por meio da sorte no bolão da virada. 

Entretanto, apesar de não ver otimismo, seria capaz de arriscar uma solução. Ainda que pareça impossível, acredito que uma das "possíveis" saídas seja algo simples, esquecido, já considerado ultrapassado e até, por vezes, ridicularizado: um sentimento, o sentimento de amor ao próximo. Sabe aquele, sobre o qual Jesus pregava, dizendo ser a chave da convivência? Pois é. Pode parecer papo de religião, mas à medida que cada pessoa, esteja entre o 1% ou os 99%, se preocupar com o que sua ação gerará de impacto nos outros ao seu redor, começaremos a desenrolar esse novelo de lã complexo que se tornou a nossa sociedade.  

Ora, mas amar o próximo significa dar as mãos. Unir seres de diferentes crenças, raças e cores. Importar-se com o bem-estar do pobre e incapaz. Olhar com carinho para aquele que me odeia. Entender e aceitar o comportamento do diferente. Enterrar os meus preconceitos, matar as minhas repulsas, passar por cima do meu orgulho. Sim, e isso custa caro. Mas, pelo visto, não queremos pagar o preço.