23 de julho de 2017

Por quem você se dobra?



"Eu era muito cobrado por não dizer 'eu te amo' para ele. Mas, é que falar isso tinha um peso tão importante para mim que eu sempre escolhia momentos especiais para dizê-lo. Então, agora, eu procuro dizer mais 'eu te amo' para meu novo namorado, sempre busco momentos para isso".

Os claros olhos da pessoa querida que me contava essa história se mostraram sensíveis naquele momento. Com uma xícara de café à mão, no fim do expediente daquele dia, pude sentir, muito profundamente pelo verde de seus olhos e no carinho de sua fala, uma notável preocupação em fazer diferente, desta vez, com um novo relacionamento, baseando-se na experiência que ela havia tido com o ex-marido.

Do outro lado, enquanto ouvia aquela história como quem recebia um presente precioso numa tarde de sexta-feira, estava eu, também com uma xícara de café à mão, perguntando-me em pensamento o quanto, de fato, aquela pessoa queria mesmo dizer tantos "eu te amo" ao novo namorado. Afinal, o ímpeto de expressar mais o seu amor fora despertado pelo atual relacionamento ou pela experiência com o anterior?

Pois é, nem todas as nossas atitudes, por vezes, nascem de nós mesmos. Várias delas são despertadas por motivações externas a nós. Uma pessoa, um trauma, um aprendizado, uma nova situação. São muitas as origens de algumas de nossas atitudes, e nem sempre estamos prontos a reconhecer isso. Se eu tivesse exposto, por exemplo, a minha pergunta em pensamento, a querida pessoa que me confidenciava a nova frequência do seu "eu te amo" certamente discordaria. Ora, será fácil admitir que nem tudo que vem de nós nasce em nós?

Caminhando por esta reflexão enquanto lavava a xícara do café após o fim daquela conversa (a empregada odiaria chegar na segunda-feira de manhã e ver duas xícaras largadas por nós ali na pia), lembrei-me de outra situação que me trouxe a mesma questão. Quando estávamos eu e uma amiga no trabalho comemorando uma aprovação com "nota 10" de um cliente.

Ao lermos o feedback dele, abraçamo-nos e, escandalosos que somos, comemoramos de forma contida, no exato momento em que nosso chefe passava pelo corredor e, vendo aquela cena, franziu a testa, levou o dedo à boca e fez um "shhh!". "Gente, a dona da agência está aí". Por mais desapropriada que fosse aquela repreensão a dois subordinados no contexto e no ambiente de uma agência de comunicação, não foi exatamente isso que me chamou a atenção. Mas, sim, ver meu chefe fazendo aquilo. 

A atitude automática dele diante da comemoração pela aprovação de uma campanha enviada por um cliente, o categórico "shhh!" que lembrou um diretor sisudo de escola do ensino fundamental, a roupa social formal que ele vestia. Tudo ali não parecia ser dele. Lembro-me de quando eu o conheci há dois anos atrás, em sua chegada à agência, e jamais imaginaria vê-lo naquela roupagem algum dia. Porém, exigência após exigência dos "donos" da agência, naquilo ele se resultou. 

Deixando os detalhes do campo profissional ou pessoal de lado, a verdade é que a vida nos transforma ao longo do tempo. E mais, ela exige que nos transformemos. Conviver com um amigo completamente diferente de você (e a diferença é uma dádiva!) é um desafio para o qual a mudança é necessária. Manter um casamento de anos demanda adaptações, concessões e, também, mudanças. A cada emprego e cargo que ocupamos nos pedem mais novas atitudes, e lá vamos nós nos transformarmos mais uma vez.

Esta maleabilidade que nos permite encaixar pelas diferentes constâncias da vida é essencial. E também positiva, afinal, aprendemos tanto com ela, abrimos nossas barreiras. Quando pensamos que já fomos tudo que tínhamos para ser, abrimos uma nova caixa e, de repente, lá está um novo "eu". No entanto, até que ponto tal maleabilidade pode nos transformar? Será que devemos nos permitir ser dobrados ao máximo possível?

Tal realidade não está apenas nos grandes atos, nos movimentos apenas expressivos. Mas, também nas pequenas atitudes. Outro dia, eu mesmo, ao me levantar da cadeira de minha escrivaninha em casa em plena madrugada para ir dormir, peguei-me colocando a cadeira de volta em seu lugar. Olhei de longe, então, e vi a cadeira encostada na escrivaninha, um detalhe que não veio de mim, mas que aprendi ao receber as engraçadas repreensões de uma colega de trabalho toda vez que me levantava para ir embora. "Vai deixar o rabo para trás de novo?".

Do mesmo modo, estes dias notei que minha cama permanece encostada na parede já faz uns meses, algo que nunca mais mudei após receber uma pessoa em casa que, ao se deitar nela, disse-me que seria muito melhor que a cama estivesse perto da parede, e não no meio do quarto. Foi impressionante como aquela mudança de alguns centímetros para a esquerda deixou o deitar muito mais aconchegante, um aconchego que permanece comigo até agora.

Uma cama, uma cadeira, um "eu te amo". Não importa de que tamanho e qual a relevância do que está em nós, mas não vem de nós, pois a verdade é que nos tornamos a soma de tudo aquilo e de todos aqueles que passam por nós. Muita coisa fica, bastante coisa vai embora, porém quem permite o ficar ou o partir somos nós, é a pessoa que recebe tantos e constantes pedidos de adaptações, de maleabilidade.

Contudo, há de se ter respeito pela sua essência. Esta, sim, não deve ser mudada. A questão "quem sou eu, na verdade?" nunca deve sair de foco. Tudo bem pedirem que eu me adapte, mas não me peçam para ser alguém que eu não sou.

Afinal, diria que este é o lado negro das constantes necessidades de mudança que a vida nos traz: destruir de forma impiedosa a nossa essência central, em prol dos meros interesses de tudo que é externo - um relacionamento, um emprego, uma amizade - coisas estas que, notem, sempre vão embora, cedo ou tarde. E aí, o que ficará e restará de nós? Pois, depois que elas se vão, a única coisa que não se vai é a nossa essência. E será que ela, sim, foi respeitada como deveria?  

Mudar ou não mudar, respeitar-se ou não, ceder ou insistir... Decisão delicada, quase que como duas faces de uma mesma carta. Algo que sempre estará em nossas próprias mãos. E a escolha, no fim das contas, sempre consistirá em saber por quem, ou o que, vale a pena se dobrar. E você, por quem você se dobra?