4 de junho de 2017

Desejo

"... nem mesmo compreendo o meu próprio modo de agir, pois não faço o que prefiro, e sim o que detesto (...) pois o querer o bem está em mim; não, porém, o efetuá-lo. Porque não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço."


Romanos 7: 15; 18-19.


Certa vez, li uma história que contava como os esquimós, sagazmente, faziam para caçar os lobos que rodeavam seu lares. Cientes do quanto esses animais eram carnívoros, os esquimós banhavam seus facões em sangue e os punham para congelar. Quando, então, as armas se transformavam em verdadeiras pedras de sangue congeladas, eram expostas na natureza como armadilhas.

Os lobos, ao se depararem com essas armas congeladas, sentiam o cheiro do sangue que ali estava e, famintos, colocavam-se a lamber avidamente o gelo que, ao derreter, inundava o paladar dos ferozes animais com o doce sabor do sangue. Acontece que o deleite dos lobos era tamanho a ponto de o gelo se derreter por completo e eles não perceberem que já estavam a lamber o próprio facão. O fio da navalha, então, começava a cortar a língua dos lobos e, agora, o sangue que os animais engoliam não era mais o congelado, mas sim o seu próprio sangue vindo de sua língua.

Mesmo se ferindo, o prazer dos lobos pelo sabor do sangue era tão grande, tão prazeroso, que eles não conseguiam parar. Machucavam-se, mas continuavam lambendo o facão compulsivamente, pois seguiam obtendo o prazer que vieram buscar. E assim o faziam até a morte.  

Não é assim que tens se sentido ultimamente, como um lobo sedento por sangue? Aprisionastes teus desejos por tanto tempo, refugiando-te para longe daquilo que gostas em um exílio criado por ti mesmo, e agora, que te vês livre, estás à solta por aí, caminhando como um lobo que procura sua presa.

Olhas para um lado e te encontras com tua gula, experimentas um, dois, três, até quatro sabores diferentes; comes e bebes ontem, hoje e amanhã. E depois? Repetes tudo outra vez, mesmo estando satisfeito; afinal, o teu desejo não está na saciedade, mas, sim, em poderes fazê-lo, no estares ao teu alcance.

Olhas para outro lado e te encontras com tua compulsão. Sem as barreiras físicas que te limitavam, aproveitas teu prazer dentro e fora de teu espaço e o divides com um, dois ou mais. Hoje, fazes isso de um jeito, amanhã de outro, exploras todas as possibilidades e espremes até a última gota de desejo, até te esgotar. Fisicamente, então, já te encontras exausto, mas o desejo, ah, esse continua ardente!

Tão ardente que nem mesmo a compulsão, e tampouco a gula, conseguem apagá-lo. O desejo sobrevive, resiste, vai além e se desdobra, transborda, cresce e inunda-te. Já estás, sim, a te deleitar com teu próprio sangue, mas não consegues parar. Já é, sim, o teu próprio sangue que escorre no fio da navalha, contudo não és forte o suficiente para frear o desejo.

Por outro lado, esse mesmo desejo que te machucas é o desejo que te moves, é o desejo que te trouxeste até aqui, e é por meio dele que fazes o que não queres, mas que também realizas o que sonhaste. Fazes bem ou fazes mal, porém fazes, vives, andas, avanças! 

E o próprio sangue que engoliste serve para te alimentar, gera aprendizado, sabedoria, capacidade para reconheceres a próxima armadilha camuflada (a qual só voltarás a desejar se o quiseres, pois estarás ciente de que se trata de uma armadilha. Entretanto, quão prazeroso não é desejar uma armadilha, sabes?).

E o corte de tua língua, a ferida de teu corpo, transforma-se em cicatriz, vira lembrança, une-se ao teu aprendizado, tu sobrevives. Mais uma vez, sobrevives. E assim és porque, ao contrário do lobo, és consciente do que fazes. Na verdade, não és enganado, e sim engana-te a ti mesmo, de propósito, por puro prazer, por puro desejo.   

E assim avanças. Bem como o teu desejo. Ambos vitoriosos. Mas, até quando? Até quando desejares? Até quando teu desejo quiser? Ou até quando sobreviveres, entre sangue e facão, enquanto és o teu desejo ou o teu desejo já se tornou a ti mesmo?