3 de janeiro de 2016

Um encontro com a doença


E, de repente, ela chegou. Sorrateiramente, lentamente, disfarçadamente.

Deu um sinal aqui, outro lá... Não que ela quisesse ser percebida. Não, de modo algum. O trunfo dela está em não se fazer perceber, ainda que dê seus sinais enquanto se instala.

Hunf! E eu lá sou sujeito de parar para prestar atenção em sinal? Termino isto antes, resolvo aquilo primeiramente, deixe-me viver isto aqui intensamente; ora, são prioridades! Hoje, penso em como ela deve ter se divertido com o fato de ser ignorada.

Mas, como ela pode se deleitar por não ser notada? Por não ganhar atenção? Pois, foi assim que ela ganhou meu corpo, me tomou por completo e foi tirando de mim toda aquela atenção que eu lhe negara antes. 

Agora, ela é notável. Veja seus sinais, agora claros e evidentes. Como eles gritam, como eles tiram minha paz, meu sono, meu sonho. Encaram-me de frente todos os dias e, ousados, ameaçam minha resiliência, minhas crenças, minha fé, minha força (a física e a da alma).

E ela segue se divertindo, avançando inexoravelmente. Desgraçada! Preciso de ajuda, penso. Busco ajuda. Mas, em quem confiar? Ando de um lado para o outro, perdido, confuso, preocupado. 

Chego a cometer o erro de achar que estou frente a deuses. Ou, pelo menos, semi-deuses. Ué, não estou indo buscar a solução para ela? Não são eles que a matam? Não, engano. Eles são tão humanos quanto eu. Erram como eu, tem pré-conceitos (e preconceitos) como eu, falsas seguranças como eu. 

Então, aguardo. Algo há de acontecer, já que estou buscando ajuda. As coisas vão melhorar, não vão? Tem de melhorar... E ela avançando, cada vez mais poderosa, cada vez mais misteriosa, derradeira. 

Algumas vezes, chegamos a conversar. Senti-me num encontro com meu maior inimigo. Procurei olhar em seus olhos, mas ela não tinha face. Tentei questioná-la, argumentar e esbravejar, mas ela não tinha voz. Que ser é este, meu Deus?!

De onde você veio? Por que está aqui? O que eu fiz... Vamos, diga-me! O que eu fiz para merecer a sua presença em meu corpo, em minha vida? Estou seguindo em frente, tenho tantas batalhas a vencer, derrotas a reverter e vitórias a comemorar. Por que você chegou para me impedir? Desde quando está aqui, instalando-se? Intrusa!

Nada. Nenhuma reação ao meu enfrentamento. Silêncio. Um silêncio vencedor e astucioso. Mas, óbvio, para que me responder? Ela tem o jogo todo ao lado dela. E dá sinais derradeiros dessa verdade amarga, tirando-me, então, uma das minhas dádivas mais preciosas. 

Não pode ser verdade! Até isso? Não acredito que cheguei a este ponto! Vão se embora a rotina, os horários, a autossuficiência. Reflito, espero, aquiesço. Então, oro. Peço a Deus misericórdia, força, proteção. Isso ela não pode me tomar, não o meu espírito.  

Pelo menos o meu espírito está a salvo, já que ela parece estar me privando dos meus cinco sentidos pouco a pouco. O que pode ser tão poderoso assim? Como pode ter tanto poder destrutivo? Quem é você? E, então, a resposta chegou.

E com ela a assustadora revelação de que fui eu mesmo, eu e mais ninguém, que a convidei para entrar e se achegar em meu corpo, em minha vida. Agora, ela fala comigo, gesticula, expressa-se, sempre com um ar vanglorioso. "Sou uma velha conhecida, lembra-se? Há tempos nos conhecemos."

Não, não pode ser. "Desde que nos encontramos pela primeira vez, você gostou tanto que me encontrou várias vezes depois". Não, como eu pude? "E, em determinado momento, você me convidou para entrar". Quando? Quando fiz isso? Preciso descobrir! "É inútil. Você não saberá, não tem controle, mal sabe quantas vezes me encontrou, é negligente".

Este diálogo se seguiu por mais um tempo. Um mês ou mais, talvez, não sei precisar. Assim como não sei precisar quando a convidei para entrar, quantas vezes a encontrei, quantas vezes me deixei levar. Estúpido, fraco, inconsequente. Persisti no erro, mesmo sabendo que era um erro, e ela entrou.

Culpo-me até hoje por tê-la deixado entrar. É certo que muitas delas entram sem serem convidadas, mas esta não. Esta se achega conforme deixamos. E eu, errôneo, deixei! Um semi-deus me disse para esquecer e ficar com a cuca fresca. "Vida que segue". Outro, quis me especular. E um último me tratou, sem grandes rodeios.

E, então, ela foi embora. Já havia vencido aquela batalha mesmo. Foi saindo, vitoriosa, vagarosamente. Recolhendo seus sinais lentamente, devolvendo meus cinco sentidos, permitindo minha recuperação.

E, hoje, o que me resta é a sua indiferença, a culpa e o medo. Medo de que eu a encontre novamente. Medo de que eu caia no erro, maldito erro, de deixá-la entrar novamente. Medo de, mais uma vez, errar. É o que sou, um ser humano medroso, com medo de si mesmo.