29 de outubro de 2017

Somos treinados

Do fotojornalista Nick Ut / AP. Em 8 de junho de 1972, Kim Phuc, vietnamita de 9 anos, chora após ter parte do corpo queimado em um bombardeio aéreo de napalm, em um vilarejo no Vietnã. (O Globo)


“Antes, quando ele morreu, eu ia todo dia, de manhã e à tarde. Na mesma semana em que ele morreu, mandei fazer um monte de foto dele e espalhei pela casa inteira. Até que um dia surtei. Eu ficava segurando, segurando... Até que quebrei tudo que tinha dentro da cozinha, mandava tudo pro quintal.

‘Calma, calma! ’, ‘calma por quê? Por que eu tenho que ficar calma? Perder filho é fácil?’. Eu chorava, tremia, tremia... Falei pra moça (no cemitério), ‘se eu não voltar até quinze para as cinco, você me chama’. ‘O que aconteceu? ’, ela me perguntou, e eu respondi ‘a senhora já sabe’. Ela disse ‘ta bom, filha. Vai, desabafa seu peito, seu coração, porque você merece isso’.

Ali eu deitei na terra, porque agora que estou fazendo o túmulo, e raspava, raspava a unha naquela terra! Não me conformava que embaixo daquela terra estava o meu filho. Ali, foi a hora que eu dei uma explosão, dos três anos que eu segurei. E orava ‘Senhor, foi da sua vontade, mas trabalha no meu coração, não vira teu rosto para mim não, Senhor’”.

Este relato me foi contado por uma forte mulher chamada Alessandra e fez parte do livro-reportagem "Vida Além do Câncer". Projeto de conclusão do curso de jornalismo meu e de mais duas amigas, as jornalistas que muito admiro Talita e Camila, este livro contou histórias de pacientes do Centro Infantil Boldrini em três perspectivas: um que sobreviveu ao câncer, um que estava passando pelo tratamento, e um que morreu com a doença. 

E como é possível perceber pelas palavras de Alessandra que aqui reproduzi, o caso do seu filho Sansão, que integrou o nosso livro, ilustrava a situação de um paciente que não havia sobrevivido ao câncer. O fato é que o forte trecho da história aqui reproduzido, apesar de ter aberto o capítulo do livro que contava a experiência de Sansão, não nos foi contado no começo da conversa com Alessandra, mas sim ao final dela. 

Entretanto, após entrevistar a nossa fonte, Alessandra, digerir tudo que ouvimos, decupar o áudio de sua entrevista (processo em que o jornalista transcreve a gravação de sua entrevista para o papel) e reler tudo aquilo, entendi que este trecho não poderia ficar para o final, ele tinha de abrir o capítulo. Dessa forma, teríamos um clímax logo no começo da história, que, além de prender o leitor logo de cara, já deixaria claro para ele que a história a ser lida tratava do caso da criança falecida. Ou seja, seria perfeito!

Pois bem, eu tinha às minhas mãos a triste, delicada e respeitosa história de uma criança que não resistira ao câncer, confidenciada por meio da dor de sua mãe, que recebera três estranhos em sua casa da forma mais afetuosa possível para falar da maior perda de toda sua vida, e ainda assim eu tinha de olhar para aquilo como material de trabalho.

Sem o natural envolvimento humano e emocional à frente, precisei tratar todo aquele conteúdo apenas como texto e colocá-lo em uma estrutura narrativa que cumprisse sua função como o capítulo de um livro. E a "cena" de Alessandra arranhando a terra do chão onde seu filho estava enterrado, momento em que sua dor finalmente explodira, tinha de abrir o capítulo.

E o final? Bem, para encerrar o capítulo reservei a conversa final entre Alessandra e Sansão no leito do hospital, quando, sem nem poder mais falar, Sansão entrava em um acordo com sua mãe que era o momento de partir. Apenas grunhindo, ele travou um diálogo final com Alessandra antes de morrer, cena esta que evitarei também reproduzir aqui porque me faria, hoje, chorar por um bom tempo. Mas, a fala "ele descansou, mãe", que Alessandra ouvira do médico, foi o texto que fechou o capítulo, embora não tenha sido a última coisa que Alessandra nos contou. 

Esta experiência é apenas uma das muitas que já tive na qual fica claro como o exercício da profissão de jornalista precisa ser extremamente técnico. Por mais que se coloque alma e verdade no trabalho jornalístico, é a técnica empregada a responsável por permitir a entrega de um produto final perfeito. Por mais difícil, envolvente ou dura que seja a situação ou história a ser contada, há de se ter o distanciamento necessário para tratar aquilo como material do nosso trabalho. Não se trata de inspiração ou potência dramática da história, mas sim de técnica.

Em outra ocasião vivida por mim em que isso também ficou evidente, precisei escrever toda a história de uma companhia de teatro para produzir o conteúdo de seu novo site e, posteriormente, efetuar uma ação de assessoria de imprensa. Todo o processo jornalístico para isso foi feito a distância, pois o cliente era de outra cidade. Cliente este, aliás, que talvez tenha sido o mais peculiar que já tive dentre os muitos já atendidos: um palhaço. 

Lembro-me até hoje das palavras dele quando respondi que não poderia ir até sua cidade para participar do evento sobre o qual trabalhei na ação de assessoria: "Finalizamos a troca? Era isso aí? Não ter havido contato - além das letras - mais aprofundado era a ideia original e final? Escreveste sobre minha vida e trabalho conseguindo não se envolver, cara. Te admiro, pois me aponta algo de que não sei fazer". 

Ora, preciso confidenciar, aqui, o quanto me toca o coração ler algo com tamanha verdade e expressão. Mas, eu tinha outros compromissos profissionais na época, a cidade do cliente era distante e o custo da viagem não compensaria o valor, não tão expressivo, que haviam me pagado pelo trabalho. O meu papel como jornalista estava cumprido, a viagem e o contato, do qual o palhaço sentira falta, não aconteceriam. 

Tal cenário da profissão de jornalista me remete a uma fala de Ana Paula Padrão em uma entrevista acerca do programa apresentado por ela atualmente, o Master Chef. Ao ser questionada sobre como encarava as situações do reality show, Ana Paula falou sobre como era necessário ter um distanciamento do envolvimento emocional com os candidatos para ser capaz de cumprir seu papel de conduzir a narrativa do programa.

E uma fala dela me marcou em especial: "nós, jornalistas, somos treinados para não nos envolver". Mesmo admirando tanto o trabalho dela e toda bagagem jornalística que ela traz consigo, incluindo sua vereda atual pelo entretenimento, não esperava me identificar tanto com uma verdade dita por uma jornalista como ela (repórter, do meio TV, apresentadora de bancada e agora no entretenimento), tão distante do tipo de atuação que tenho nos meus dez anos de carreira. "Somos treinados". 

De fato, nós, jornalistas, somos treinados a não nos envolver. Por outro lado, o exercício de nossa profissão, como qualquer outro, deixa marcas. É impossível não absorver algo para si de todas as histórias contadas pelos diferentes tipos de personagens e fontes que atravessam nosso caminho. Nós, jornalistas, carregamos em nossa alma um pouco de cada história contada pelos seres humanos que entrevistamos. 

Da mesma forma, caro leitor, tudo que teci até aqui pode parecer se resumir apenas à profissão de jornalista, mas, na verdade, tem a ver com a vida em seu amplo aspecto. Afinal, o jornalismo é a vida em todas as suas nuances, e este distanciamento, tão presente em nossa técnica, tem a ver com a vida de todos nós.

Pois veja, não é verdade que você, em seu cotidiano, também não atravessa a vida de várias pessoas? Elas também não te contam suas histórias? Muitas vezes nem por palavras, mas por gestos, olhares ou atitudes, as pessoas ao seu redor, integrantes do seu dia a dia, também carregam uma história consigo, porém nem sempre são ouvidas. 

Isso se faz verdade na pessoa apreensiva que se senta ao seu lado no ônibus, mas com quem nem há um "bom dia"; com o estranho que olha sorrindo para você na fila do banco, mas de quem você nem saberá o nome; no chefe que te recebe em sua mesa ao final do expediente para tratar de um assunto com uma expressão de tristeza, com quem você fala, mas sequer pergunta se está tudo bem; do ser humano com quem você se dispõe a transar ao final da balada ou de uma caça no aplicativo, mas cuja história de vida você nem sonhará em descobrir após o gozo.

Simplesmente porque somos treinados. Todos nós. Desde pequenos quando ouvimos de nossa mãe para não falarmos com estranhos, até quando já adultos seguimos à risca a etiqueta de não prolongar a resposta ao "tudo bem?" do rápido cumprimento cotidiano. Todos sabemos que não devemos falar, tampouco perguntar, pois a vida precisa seguir sem os percalços da inveja e curiosidade alheia, porque não se há tempo ou porque a intimidade pode ser uma inimiga. 

Os motivos são vários, as oportunidades também, mas somos treinados. A vida nos treina assim, as pessoas também. O jornalista, então, apenas tem isso como ossos do ofício. 

Contudo, você também há de carregar contigo as histórias que te marcaram, que tocaram sua alma e coração. E para cada uma delas, meu convite, como jornalista e ser humano, é que você abra mais seus olhos e ouvidos, para ser capaz de, assim, treinar-se a percebê-las. 


23 de julho de 2017

Por quem você se dobra?



"Eu era muito cobrado por não dizer 'eu te amo' para ele. Mas, é que falar isso tinha um peso tão importante para mim que eu sempre escolhia momentos especiais para dizê-lo. Então, agora, eu procuro dizer mais 'eu te amo' para meu novo namorado, sempre busco momentos para isso".

Os claros olhos da pessoa querida que me contava essa história se mostraram sensíveis naquele momento. Com uma xícara de café à mão, no fim do expediente daquele dia, pude sentir, muito profundamente pelo verde de seus olhos e no carinho de sua fala, uma notável preocupação em fazer diferente, desta vez, com um novo relacionamento, baseando-se na experiência que ela havia tido com o ex-marido.

Do outro lado, enquanto ouvia aquela história como quem recebia um presente precioso numa tarde de sexta-feira, estava eu, também com uma xícara de café à mão, perguntando-me em pensamento o quanto, de fato, aquela pessoa queria mesmo dizer tantos "eu te amo" ao novo namorado. Afinal, o ímpeto de expressar mais o seu amor fora despertado pelo atual relacionamento ou pela experiência com o anterior?

Pois é, nem todas as nossas atitudes, por vezes, nascem de nós mesmos. Várias delas são despertadas por motivações externas a nós. Uma pessoa, um trauma, um aprendizado, uma nova situação. São muitas as origens de algumas de nossas atitudes, e nem sempre estamos prontos a reconhecer isso. Se eu tivesse exposto, por exemplo, a minha pergunta em pensamento, a querida pessoa que me confidenciava a nova frequência do seu "eu te amo" certamente discordaria. Ora, será fácil admitir que nem tudo que vem de nós nasce em nós?

Caminhando por esta reflexão enquanto lavava a xícara do café após o fim daquela conversa (a empregada odiaria chegar na segunda-feira de manhã e ver duas xícaras largadas por nós ali na pia), lembrei-me de outra situação que me trouxe a mesma questão. Quando estávamos eu e uma amiga no trabalho comemorando uma aprovação com "nota 10" de um cliente.

Ao lermos o feedback dele, abraçamo-nos e, escandalosos que somos, comemoramos de forma contida, no exato momento em que nosso chefe passava pelo corredor e, vendo aquela cena, franziu a testa, levou o dedo à boca e fez um "shhh!". "Gente, a dona da agência está aí". Por mais desapropriada que fosse aquela repreensão a dois subordinados no contexto e no ambiente de uma agência de comunicação, não foi exatamente isso que me chamou a atenção. Mas, sim, ver meu chefe fazendo aquilo. 

A atitude automática dele diante da comemoração pela aprovação de uma campanha enviada por um cliente, o categórico "shhh!" que lembrou um diretor sisudo de escola do ensino fundamental, a roupa social formal que ele vestia. Tudo ali não parecia ser dele. Lembro-me de quando eu o conheci há dois anos atrás, em sua chegada à agência, e jamais imaginaria vê-lo naquela roupagem algum dia. Porém, exigência após exigência dos "donos" da agência, naquilo ele se resultou. 

Deixando os detalhes do campo profissional ou pessoal de lado, a verdade é que a vida nos transforma ao longo do tempo. E mais, ela exige que nos transformemos. Conviver com um amigo completamente diferente de você (e a diferença é uma dádiva!) é um desafio para o qual a mudança é necessária. Manter um casamento de anos demanda adaptações, concessões e, também, mudanças. A cada emprego e cargo que ocupamos nos pedem mais novas atitudes, e lá vamos nós nos transformarmos mais uma vez.

Esta maleabilidade que nos permite encaixar pelas diferentes constâncias da vida é essencial. E também positiva, afinal, aprendemos tanto com ela, abrimos nossas barreiras. Quando pensamos que já fomos tudo que tínhamos para ser, abrimos uma nova caixa e, de repente, lá está um novo "eu". No entanto, até que ponto tal maleabilidade pode nos transformar? Será que devemos nos permitir ser dobrados ao máximo possível?

Tal realidade não está apenas nos grandes atos, nos movimentos apenas expressivos. Mas, também nas pequenas atitudes. Outro dia, eu mesmo, ao me levantar da cadeira de minha escrivaninha em casa em plena madrugada para ir dormir, peguei-me colocando a cadeira de volta em seu lugar. Olhei de longe, então, e vi a cadeira encostada na escrivaninha, um detalhe que não veio de mim, mas que aprendi ao receber as engraçadas repreensões de uma colega de trabalho toda vez que me levantava para ir embora. "Vai deixar o rabo para trás de novo?".

Do mesmo modo, estes dias notei que minha cama permanece encostada na parede já faz uns meses, algo que nunca mais mudei após receber uma pessoa em casa que, ao se deitar nela, disse-me que seria muito melhor que a cama estivesse perto da parede, e não no meio do quarto. Foi impressionante como aquela mudança de alguns centímetros para a esquerda deixou o deitar muito mais aconchegante, um aconchego que permanece comigo até agora.

Uma cama, uma cadeira, um "eu te amo". Não importa de que tamanho e qual a relevância do que está em nós, mas não vem de nós, pois a verdade é que nos tornamos a soma de tudo aquilo e de todos aqueles que passam por nós. Muita coisa fica, bastante coisa vai embora, porém quem permite o ficar ou o partir somos nós, é a pessoa que recebe tantos e constantes pedidos de adaptações, de maleabilidade.

Contudo, há de se ter respeito pela sua essência. Esta, sim, não deve ser mudada. A questão "quem sou eu, na verdade?" nunca deve sair de foco. Tudo bem pedirem que eu me adapte, mas não me peçam para ser alguém que eu não sou.

Afinal, diria que este é o lado negro das constantes necessidades de mudança que a vida nos traz: destruir de forma impiedosa a nossa essência central, em prol dos meros interesses de tudo que é externo - um relacionamento, um emprego, uma amizade - coisas estas que, notem, sempre vão embora, cedo ou tarde. E aí, o que ficará e restará de nós? Pois, depois que elas se vão, a única coisa que não se vai é a nossa essência. E será que ela, sim, foi respeitada como deveria?  

Mudar ou não mudar, respeitar-se ou não, ceder ou insistir... Decisão delicada, quase que como duas faces de uma mesma carta. Algo que sempre estará em nossas próprias mãos. E a escolha, no fim das contas, sempre consistirá em saber por quem, ou o que, vale a pena se dobrar. E você, por quem você se dobra?


4 de junho de 2017

Desejo

"... nem mesmo compreendo o meu próprio modo de agir, pois não faço o que prefiro, e sim o que detesto (...) pois o querer o bem está em mim; não, porém, o efetuá-lo. Porque não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço."


Romanos 7: 15; 18-19.


Certa vez, li uma história que contava como os esquimós, sagazmente, faziam para caçar os lobos que rodeavam seu lares. Cientes do quanto esses animais eram carnívoros, os esquimós banhavam seus facões em sangue e os punham para congelar. Quando, então, as armas se transformavam em verdadeiras pedras de sangue congeladas, eram expostas na natureza como armadilhas.

Os lobos, ao se depararem com essas armas congeladas, sentiam o cheiro do sangue que ali estava e, famintos, colocavam-se a lamber avidamente o gelo que, ao derreter, inundava o paladar dos ferozes animais com o doce sabor do sangue. Acontece que o deleite dos lobos era tamanho a ponto de o gelo se derreter por completo e eles não perceberem que já estavam a lamber o próprio facão. O fio da navalha, então, começava a cortar a língua dos lobos e, agora, o sangue que os animais engoliam não era mais o congelado, mas sim o seu próprio sangue vindo de sua língua.

Mesmo se ferindo, o prazer dos lobos pelo sabor do sangue era tão grande, tão prazeroso, que eles não conseguiam parar. Machucavam-se, mas continuavam lambendo o facão compulsivamente, pois seguiam obtendo o prazer que vieram buscar. E assim o faziam até a morte.  

Não é assim que tens se sentido ultimamente, como um lobo sedento por sangue? Aprisionastes teus desejos por tanto tempo, refugiando-te para longe daquilo que gostas em um exílio criado por ti mesmo, e agora, que te vês livre, estás à solta por aí, caminhando como um lobo que procura sua presa.

Olhas para um lado e te encontras com tua gula, experimentas um, dois, três, até quatro sabores diferentes; comes e bebes ontem, hoje e amanhã. E depois? Repetes tudo outra vez, mesmo estando satisfeito; afinal, o teu desejo não está na saciedade, mas, sim, em poderes fazê-lo, no estares ao teu alcance.

Olhas para outro lado e te encontras com tua compulsão. Sem as barreiras físicas que te limitavam, aproveitas teu prazer dentro e fora de teu espaço e o divides com um, dois ou mais. Hoje, fazes isso de um jeito, amanhã de outro, exploras todas as possibilidades e espremes até a última gota de desejo, até te esgotar. Fisicamente, então, já te encontras exausto, mas o desejo, ah, esse continua ardente!

Tão ardente que nem mesmo a compulsão, e tampouco a gula, conseguem apagá-lo. O desejo sobrevive, resiste, vai além e se desdobra, transborda, cresce e inunda-te. Já estás, sim, a te deleitar com teu próprio sangue, mas não consegues parar. Já é, sim, o teu próprio sangue que escorre no fio da navalha, contudo não és forte o suficiente para frear o desejo.

Por outro lado, esse mesmo desejo que te machucas é o desejo que te moves, é o desejo que te trouxeste até aqui, e é por meio dele que fazes o que não queres, mas que também realizas o que sonhaste. Fazes bem ou fazes mal, porém fazes, vives, andas, avanças! 

E o próprio sangue que engoliste serve para te alimentar, gera aprendizado, sabedoria, capacidade para reconheceres a próxima armadilha camuflada (a qual só voltarás a desejar se o quiseres, pois estarás ciente de que se trata de uma armadilha. Entretanto, quão prazeroso não é desejar uma armadilha, sabes?).

E o corte de tua língua, a ferida de teu corpo, transforma-se em cicatriz, vira lembrança, une-se ao teu aprendizado, tu sobrevives. Mais uma vez, sobrevives. E assim és porque, ao contrário do lobo, és consciente do que fazes. Na verdade, não és enganado, e sim engana-te a ti mesmo, de propósito, por puro prazer, por puro desejo.   

E assim avanças. Bem como o teu desejo. Ambos vitoriosos. Mas, até quando? Até quando desejares? Até quando teu desejo quiser? Ou até quando sobreviveres, entre sangue e facão, enquanto és o teu desejo ou o teu desejo já se tornou a ti mesmo? 

5 de março de 2017

Reencontro

Lá estava eu, atrasado, seguindo pela Santos Dumont em direção à terapia. Aquela rodovia é um inferno às sete da manhã! Bem ou mal, as intermináveis filas de carros completamente paradas me deram tempo para refletir, enquanto tentava vencer o desafio de não me atrasar muito.

Afinal, dois anos tinham se passado desde a última vez em que havia visto minha psicóloga. Dois anos... Tanta coisa acontece neste tempo. O que, de fato, deveria ser comentado? A mudança de casa, os relacionamentos criados, as relações perdidas, os sonhos realizados e os novos que se faziam... Menos quinze minutos para se chegar ao destino, fico ainda mais colérico com a situação daquela rodovia.

Talvez, eu devesse falar dos planos para o ano que se iniciará. Ou, quem sabe, comentar aquela difícil situação vivida. Ah, mas tem outro fato importante a ser destacado de um ano e meio atrás... E mais vinte minutos se vão até que eu, finalmente, consigo chegar àquela sessão e reencontrar minha terapeuta, que eu não via há exatos dois anos.

"Você está igualzinho, não mudou nada". De certo modo, fiquei contente com o comentário. Pois, se começamos a envelhecer, de verdade, depois dos 25 anos, devo estar caminhando amigavelmente com a minha idade. Ao contrário da minha relação com os meus atrasos, que me dera, nesta situação, apenas 40 minutos de sessão. Seria possível, em 40 minutos, contar o ocorrido em dois anos? 

Não sei. Mas, naquele momento era como se, à minha frente, não estivesse mais minha psicóloga; era como se eu estivesse olhando para os dois últimos intensos anos vividos e precisasse reencontrá-los, ali, para um bate-papo de quarenta minutos. Foi, então, que a preocupação com o que contar foi embora, e tudo que senti neste encontro foi vontade. 

Vontade de rever esses dois queridos. Da mesma forma como quando revejo amigos, após um bom tempo sem nos encontrarmos, estava ali diante de dois anos vividos, feliz por vê-los novamente. É ali que aconteceu o mesmo processo de se matar as saudades com os amigos.

Olha só, como você mudou, está mais bonito. Veja, está mais forte também. Não me diga que você fez isso? Que máximo! Pois é, que coisa boa. Hum, esta decisão foi importante, hein? Que ótima esta novidade! Conte-me mais sobre ela... Ah, que saudades eu estava de vocês!

Assim, foi um encontro saudoso. Não precisei de mais do que quarenta minutos para olhar para esses dois velhos conhecidos e ver como eles foram bons! Se houve momentos ruins? Claro que sim, alguns bem sérios, inclusive. Porém, assim como perdoamos e nos esquecemos das ranhuras de uma boa amizade, deixei de lado as situações ruins e só fui capaz de me lembrar de coisas boas.

Afinal, estava ali olhando para dois queridos tão importantes. Como poderia me prender aos fatos pesados, se as lembranças boas eram tão vívidas? Que bom que eu os reencontrei! Que bom que enfrentei a correria crônica do cotidiano, escancarada na Santos Dumont, para abrir uma brecha na agenda a este reencontro. Que bom que eu parei e olhei para vocês.

Logo, os quarenta minutos se foram. Rápidos, bons e suficientes. Como tinham de ser. E minha psicóloga, que ali me observava revendo estes entes queridos, então fechou aquela sessão quase como a iniciou: "você está diferente, sabe?". 

Sim, eu estou (cada vez mais) diferente.