13 de fevereiro de 2021

O choro de Lucineia

 


Mulher Chorando (1947) - Candido Portinari


Lucineia estava encostada na porta da sala da simples casa onde passei minha infância. Muitas vezes chamada de "barracão", a casa tinha um formato horizontal, teto baixo, um grande quintal de terra e água de poço artesiano. Ficava de frente para um verde e extenso pasto, que integrava uma paisagem sempre tomada por um céu azul claro límpido e montanhas com coqueiros. Era para essa vista que Lucineia olhava, silenciosa, de costas para o interior da casa.

Naquela ocasião, eu com meus apenas sete anos de idade, fui tomado pela curiosidade ao vê-la assim. Junto com meus dois primos, também crianças, fui me achegando sorrateiro perto dela, como se fosse espiar algo muito sigiloso. Contornei as grandes e bonitas pernas que ela tinha, que o shorts curto que ela usava sempre deixava à mostra, e me lembro claramente do meu olhar indo de baixo a cima, fazendo-me enxergar seus olhos marejados e as suas mãos repousadas na barriga, como se acalentasse o filho que ela estava esperando. 

Por que ela está chorando? Foi o que a minha curiosidade de criança me trouxe à mente. A mesma curiosidade que desde sempre me fez criar histórias, mundos e inúmeros personagens também me dera sensibilidade para entender que havia algo ali, naquele choro. Algo a mais, que, obviamente, eu não fora capaz de entender à época, mas que hoje me retorna à mente com um significado muito profundo daquele choro. Talvez, retorne-me mais ao coração do que à mente, na verdade.

Lucineia era a moça que ajudava minha tia, irmã de minha mãe, nos afazeres da casa. Ou a "empregada doméstica", para deixar de lado o eufemismo. Nos anos 90, minha tia ainda tinha um padrão de vida que lhe permitia esse tipo de ajuda e, por estar com a casa em reforma, estava passando um tempo na minha casa. Junto com ela, então, foi Lucineia. Jovem e pobre, carregando um filho, solteira, no Brasil dos anos 90. Talvez, nem ela mesma entendesse o desafio que teria pela frente enquanto admirava a paisagem da zona rural onde eu e minha família morávamos, mas certamente ela o sentia, e as suas lágrimas falavam por ela.

Interessante frisar que para eu chegar ao entendimento suficiente que me permitisse olhar dessa forma para essa cena (e esse cenário) que descrevi até aqui, foram necessários mais de vinte anos. E, muito certamente, eu apenas tenha ressignificado o olhar curioso de uma criança de mente fértil, pois jamais serei capaz de alcançar o sentimento que as lágrimas de Lucineia carregavam. Como um homem, branco, pertencente (hoje) a uma condição de vida favorável, eu posso imaginar esse sentimento, mas jamais terei a dádiva (ou a dor) de senti-lo.

Assim como jamais terei a dádiva de ser capaz de sentir o que todas as mulheres que integram a minha vida já sentiram, um dia, ao longo de sua trajetória. Atrás de mim, na minha história, gravadas no percurso da minha existência, estão mulheres da minha família que foram as responsáveis por me ajudar a alcançar a vida que tenho hoje. Outras pessoas também, é claro, inclusive homens, mas nenhuma delas tão significativas quanto essas mulheres.

Essa conclusão levou muito tempo para ser elaborada. Não se trata de um desses clichês prontos tão disponíveis por aí atualmente, mas sim de uma conclusão de vida. E mais do que uma conclusão racional, trata-se de algo que eu sinto (sentir, no mais profundo poder que esse verbo carrega consigo). Aos sete anos de idade, eu não era capaz de entender as lágrimas de Lucineia, mas por algum motivo elas me voltam à mente (ou ao coração) depois de eu ter trilhado uma extensa caminhada.

Essas lágrimas, silenciosas, doloridas e amedrontadas já estiveram no rosto de minha mãe um dia, que, grávida aos quatorze anos, também não podia imaginar o que enfrentaria em sua trajetória. Também estiveram no rosto de minha avó paterna, que sobreviveu para criar três filhos e sustentar toda uma família, inclusive dando luz ao meu pai em uma garagem. Estiveram, ainda, no rosto de minha avó materna, que hoje continua carregando em seu corpo e em sua alma o peso de uma vida marcada pela desordem e pela falta de amor.

E, apesar das lágrimas, essas mulheres foram capazes de enxugar o seu rosto e seguir adiante. Da forma como foi possível e com as limitações que tinham, mas seguiram. Diante da possibilidade de escolher o abandono, elas optaram pelo acolhimento. Diante da possível desistência, bancaram o enfrentamento. E quando estiveram cara a cara com a morte, quando poderiam, sim, prezar pela sua vida e pelo seu próprio corpo em vez de trazer mais um ser humano ao mundo, elas decidiram se arriscar. Colocaram seu sangue, suas forças e até o seu mais profundo suspiro para que outros seres humanos pudessem viver, pudessem construir suas vidas e, vejam só, pudessem até se voltar contra elas, em algum momento da vida. 

Ora, para conseguir olhar para essas mulheres e enxergar isso tudo, foi necessário que eu me despisse, ao longo do meu caminhar, de toda mágoa, ressentimento e até ódio que a vida, infelizmente, leva-nos a carregar. Não importam os motivos, não há culpados, pois o mal simplesmente acontece e faz parte da vida. E quando fui capaz de deixar o amor invadir meu coração e diluir todo o natural ressentimento trazido pela vida, pude olhar verdadeiramente para essas mulheres. Eu pude, então, me lembrar do choro de Lucineia.


Imagem disponível em: https://artsandculture.google.com/asset/woman-crying/wgGMDt2ERUzg3g?hl=pt-br. Acesso em 13 fev. 2021.