25 de julho de 2016

Faça com que eu te ame ou me perca de vista



Eu mal podia acreditar no que estava lendo. Uma amiga minha, tão querida quanto uma irmã, contava-me como aconteceu seu término de namoro. A relação, que já durava alguns anos e a qual eu sempre admirei, tamanho o nível de intimidade existente entre o casal, simplesmente acabou porque, segundo minha amiga, sua namorada se sentia presa em uma gaiola e achava que vivia mais uma amizade do que um namoro. Isso tudo marcado pelo distanciamento causado por uma cirurgia feita pela minha amiga.

"Dois meses sem sexo, onde já se viu?"; "mas, gente, eu estou operada!". Parece que a cirurgia de minha amiga foi colocada como estopim de algo que já vinha se arrastando há um tempo; e a ida de sua ex-namorada para uma balada (sozinha e em outra cidade) foi o gancho para a conversa que gerou o término. O curioso é que tudo isso poderia ter sido me contado pela minha amiga pessoalmente. Mas, não, fizemos-o pelo Whats App. Da mesma forma, esse término entre ela e a parceira foi feito todo a distância, usando Whats App e, às vezes, telefone. "Acho que perdi a fé na humanidade depois disso", foi a última coisa que li dela.

Diante do relato, confesso que fiquei chocado. Uma relação de anos, marcada por uma forte amizade que se transformou em namoro, repleta de identificação e construída com base em momentos importantes, não foi o suficiente para resistir a um desfalecimento, assim, tão repentino, de forma tão leviana, sem sequer uma conversa olhando nos olhos. Ora, o que é preciso para poder confiar que uma relação irá se sustentar, hoje em dia? 

Na mesma semana, depois disso, encontrei-me com um amigo para um café e ouvi um relato que me levou à mesma reflexão. Enquanto nos serviam cafés expressos e um delicioso pedaço de bolo, perguntei a ele como havia sido o encontro com um rapaz, na semana passada, para o qual ele estava muito animado. Ouvi dizer que o moço, apesar de ter apenas 23 anos, era uma pessoa madura e responsável. Confeiteiro profissional, já com seu próprio carro e de espírito empreendedor, tinha conversas interessantes pelo Whats App. Mas, ele me contou, desanimado, que o rapaz simplesmente sumiu após o encontro.

"Ele não se interessou por uma palavra do que eu dizia, sabe? Ouvi tudo sobre ele, com interesse, fiz perguntas, mas não vi nenhum interesse em me ouvir. Sei lá se ele não gostou da minha aparência quando me viu". Perguntei ao meu amigo se ele tinha compartilhado com o rapaz a sensação de que não havia sentido interesse da parte dele, se tinha sugerido tentar um segundo encontro ou uma nova conversa, se tinha falado sobre o que sentia. "E como fazer isso? Depois que ficamos, ele foi embora e desapareceu do Whats App no dia seguinte. Foi ficando quieto até não me responder mais".

Ao terminar de ouvir meu amigo, fiquei com a mesma sensação de leviandade que tive quando terminei de ler as mensagens de minha amiga. Uma relação de anos e uma relação que durou apenas uma noite, ambas terminadas com um simples corte, feito a distância, sem mais delongas para explicações ou reflexões. Será que a tecnologia nos possibilitou facilitar os rompimentos ou nós que a usamos como um canal para colocar em prática a superficialidade que se tornaram as nossas relações? 



Acredito que essa tecnologia toda, tão ágil e sagaz, só acentuou algo que está cada vez mais nítido ao nosso redor e em nós mesmos: a ânsia pelo imediatismo. Atualmente, é um verdadeiro desafio conseguir criar, desenvolver e manter um relacionamento. É tudo tão rápido e passageiro, que descartar uma relação, por mais importante que ela pareça ser, tornou-se fácil.

Ora, o "crush" não te agrada mais? É só passar a ignorá-lo no Whats App e buscar um novo match nos apps de pegação. Para terminar um namoro, basta trocar mensagens pelo celular. O primeiro encontro foi ruim? Comece a ficar distante e a não responder com tanta frequência, logo a pessoa some. Fácil, simples, supérfluo! A comunicação está mais ágil. As relações (sexuais ou amorosas) mais facilitadas. Para que perder tempo com explicações? 

E, diante disso, um diálogo aprofundado, onde é possível dizer o que se sente e compartilhar pensamentos, torna-se chateação. O que importa é o momento! Enquanto está bom, enquanto se está feliz e animado, mesmo momentaneamente, isso servirá. Porém, a partir do ponto em que há uma queda nessa empolgação, a coisa passa a ser questionável de ser mantida. Afinal, se não é mais legal, para que manter isso? 

E nessa perspectiva de "faça-me rir e me faça bem, faça-me feliz", vamos nos esquecendo de que para estar bem com alguém, para estar feliz com qualquer pessoa (seja namorado, amigo ou familiar), precisamos antes estarmos bem com nós mesmos. Não adianta continuarmos a procurar nos outros ao nosso redor, em nossos empregos ou em nossos estudos algo que nos mantenha "feliz" o tempo todo, como se não houvesse momentos de baixa na vida.

Pois, a beleza de saber manter qualquer coisa no dia a dia é justamente essa, entender que haverá momentos bons e ruins e que é preciso tempo para sentir, de fato, o que se está vivendo.

Contudo, enquanto esperarmos imaturamente que tudo seja lindo o tempo todo, que sejamos conquistados em cinco minutos ou que não haja decepções, continuaremos a não dar tempo para as situações da vida se mostrarem realmente interessantes; e, assim, pularemos de emprego em emprego, faremos "n" mochilões pela Europa, trocaremos de amigos, descartaremos pessoas pelo Whats App após a primeira noite e até findaremos a distância com relações de anos.

Por isso, caro amigo, antes de lançar, mais uma vez, o desafio do "faça com que eu te ame ou me perca de vista" para algo ou alguém, lance para si mesmo o desafio de ser capaz de descobrir a beleza existente no que está à sua frente, antes que seja tarde demais e o seu amontoado de momentos se dissolva novamente.


27 de maio de 2016

A força que vem das cicatrizes



Era uma tarde fresca em Campinas, eu respirava a brisa que agitava as folhas das muitas árvores ao nosso redor. Adoro as ruas de Barão Geraldo. Eu estava encostado no carro, junto com meu pai e meu primo, ao lado do Centro Infantil Boldrini. Enquanto admirava todo aquele cenário, chamou-me a atenção o caminhar de uma garota, apoiada em suas muletas, pela calçada à minha frente.

Ela andava com dificuldade. Seus braços pareciam não sustentar com tanta firmeza o corpo robusto que precisavam levar adiante se equilibrando em duas muletas nas irregulares calçadas que rodeiam o Boldrini. De repente, ela se desequilibra, sua única perna apoiada no chão vira e a faz encostar num carro estacionado por perto. Suas mãos soltam as muletas e tentam segurar, em vão, na porta do carro. O corpo da menina vai deslizando e, então, cai no chão.

Com o barulho do tombo, a primeira reação de meu primo foi correr para ajudar a garota a se levantar. Mas, uma mulher, que me pareceu ser a mãe dela, estava mais próxima e chegou antes dele para oferecer amparo; ao que, em resposta, recebeu um "me solta, eu me levanto sozinha, deixa!" como resposta da garota caída, que, agora, apoiava nas muletas para se levantar. A reação negativa dela fez meu primo voltar atrás.

Depois dessa cena, fiquei pensando no porquê da menina ter recusado ajuda para se levantar. Afinal, por que se sentir ofendida com uma mão estendida para te levantar do chão? Outro dia, porém, quando eu, então, usava muletas, ao passar pela área de casa numa tarde chuvosa deixei que um escorregão me jogasse de joelhos no chão. Meu pai rapidamente se abaixou para me ajudar, e minha reação foi "pode deixar, eu me levanto sozinho". A mesma resposta irritada. A mesma reação diante de uma ajuda.

A partir do meu tombo, pude perceber o que incomodou a garota que eu vira cair. Entendi o sentimento dela. Quando perdemos o chão, a sustentação de todo nosso corpo, não levamos apenas um tombo, mas perdemos também a nossa própria segurança. Juntamente com o cair, vai embora toda nossa autossuficiência. Ficamos vulneráveis. Daí a necessidade de recusar ajuda, pois a primeira preocupação é não querer demonstrar fraqueza. Contudo, será que somos tão fortes assim? 

Essas e outras situações já me fizeram refletir, por vezes, em como a dor física transforma o ser humano; e o transforma de maneira completa! A dor física parece ter a capacidade de arrancar de nós todas as nossas certezas sobre a vida. Todas as seguranças que construímos dentro de nós, e para nós mesmos, parecem ser atingidas de maneira profunda, fazendo-nos questionar tudo ao nosso redor.

Tal questionamento é o tipo de pensamento que não costumamos nutrir no dia a dia sempre tomado pela nossa certeza de que (aparentemente) temos o controle de tudo ao nosso redor. Trata-se do questionar por que tal dor nos atinge, ter medo de sua causa, aflição do esperar a mesma ir embora. É a terrível sensação de encarar um futuro incerto.

Esse é o sentimento que nos toma quando nos encontramos numa cama de hospital. Ou, ainda, quando simplesmente caímos e nos deparamos com a verdade de que não somos tão autossuficientes quanto pensamos. Entretanto, a vida tem a beleza de nos permitir regenerarmos. A garota que eu vi naquele dia, provavelmente, levantou-se outras vezes e abandonou as muletas. Assim como eu deixei as minhas muletas de lado alguns meses depois daquele tombo e nunca mais precisei delas.

O que fica, depois disso, são as cicatrizes. As marcas que a dor física nos deixa, talvez não como castigo ou herança ruim, mas como lembrança do que já superamos, daquilo que já fomos capazes de vencer. As cicatrizes, nesse sentido, têm a incrível capacidade de nos tornar mais fortes. Mais do que qualquer fortalecimento que possamos buscar, é superar uma debilidade e ganhar uma cicatriz que nos fortalece de verdade.

E, além de nos fortalecer, são também as cicatrizes que nos dão maturidade. Afinal, a primeira coisa que fazemos ao superarmos uma dor física é esquecê-la. Jogamos a sensação de dor para o inconsciente e nunca mais visitamos este local para revivê-la. Porém, ao olharmos para uma cicatriz, lembramos que por ali passou uma dor. Daí vem a maturidade, pois encaramos nossa autossuficiência com mais ceticismo. Pisa-se com mais cuidado, mas também se caminha com mais força.  

Eu não sei se você tem uma lembrança como essa aí contigo. Tampouco sei a quem você se apegou no momento em que suas certezas foram arrancadas; se a Deus, ao universo, à pessoa amada que estava próxima. Mas, uma coisa é certa, seja a sua cicatriz uma marca visível ou não, possa você tocá-la ou não, há uma força que vem dela. E essa força não se perde nunca, ainda que, às vezes, a sua muleta ceda e o cair seja inevitável.


28 de março de 2016

Deixar pessoas é preciso



"Eu me sinto culpada por estar brigada com ela. Porque ela já fez tanto por mim, que parece que estou sendo ingrata, sabe? Mas, eu sei que não estou errada". 

Ouvi essas palavras de uma querida amiga, de longa data, um dia enquanto tomávamos café em sua casa. O aroma do café que ela preparara para gente, a fim de acompanhar a conversa, aquecia não só nosso olfato e paladar, como também os corações enternecidos, naquela ocasião, por conta de uma desavença que havíamos tido com uma amiga em comum, cuja amizade também se estendia por mais de uma década.

A fala dela me chamou bastante a atenção, pelo modo como se sentia culpada por ter uma desavença com alguém que fora tão importante para ela em determinada fase de sua vida. Que a ajudara, extremamente, em um momento de intensa necessidade, pelo qual ela provavelmente não passaria não fosse a ajuda dessa amiga. E, então, era como se a desavença a culpasse, acusasse-a de ser ingrata.

Diante da constatação desse sentimento, argumentei com minha aflita amiga que ela não deveria se sentir culpada, pois desavenças acontecem a todo momento pelas indiferenças que naturalmente temos, mas, sobretudo, pelo fato de que, na vida, não vamos criando saldos positivos ou devedores com as pessoas ao nosso redor conforme nossas atitudes. Que não vamos nos enredando em uma série de dívidas e cobranças de acordo com nossos atos, os quais nos permitem agir de uma forma ou de outra.

Se assim fosse, diante de uma desavença, como era o caso, eu teria de recompensar tudo que a pessoa fizera por mim para, então, poder discordar em algo com ela? Só depois de me sentir ter sido suficientemente útil para essa pessoa, como ela fora para mim, eu poderia demonstrar uma insatisfação? O que haveria de sinceridade nisso?

Curiosamente, minha amiga retomou a amizade com nossa amiga em comum, com quem estávamos em desavença na ocasião, um mês depois desta conversa. Eu, por outro lado, segui da mesma forma, sem retomar a amizade com ela, sem mais convivência, sem nenhum contato. De lá para cá, lembrei-me que neste mês de março se completa 1 ano dessa ausência que, pelo visto, tornou-se permanente. 

E me lembrar desse "aniversário de desamizade" me fez refletir em como é necessário que, ao longo da vida, deixemos pessoas pelo caminho. No caso dessa amiga (a qual ainda considero uma amiga, porém distante), afastamo-nos por questões que, necessariamente, não foram escolhas nossas. Afinal, a vida de ambos foi mudando conforme o tempo passou, as prioridades foram se alternando, a visão de mundo se transformando, as histórias, consequentemente, distanciando-se.  

Conquanto isso acontecesse inevitavelmente, a gente ainda se gostava, porém nos tornamos tão diferentes que nem mesmo a amizade com duração além de uma década foi capaz de sustentar uma convivência que, infelizmente, não fazia mais sentido. A desavença que nos separou, na verdade, foi um mero despontamento disso.

Claro que há vários tipos de distanciamentos e nem sempre o "rompimento" é o necessário ou ideal. Às vezes, apenas a "não convivência" preenche esse vazio deixado pela incompatibilidade de realidades. Mas, a verdade é que é difícil aceitar tal consequência. Pelo menos para mim, há um tempo atrás, era um crime imaginar deixar que uma amizade de décadas se fosse... Imagine, não posso deixar isso acontecer! Tanta história não pode acabar nunca... É a tal ilusão do "amigos para sempre", "ficaremos juntos até o fim", a tal "dívida" que sentimos ter com as pessoas que foram importantes para nós um dia.

Pois, a beleza suprema da vida de aprender algo novo a cada fase me mostrou que não há nada de errado ou lamentoso nisso. Ora, tudo nessa vida precisa (e deve) ter um começo, meio e fim. Tudo, uma hora, acaba. E nós temos que saber aceitar essa verdade. E mais, aceitar e fazer dela algo belo. Afinal, se sabemos que vai terminar, se temos consciência de que, naturalmente, algo irá se findar, então vamos fazer o máximo para que essa história seja memorável, inesquecível! 

Assim, saber construir algo marcante, fazendo o "durante" valer a pena, é que faz toda diferença, ainda que acabe um dia, como sabemos que certamente acontecerá. É o caso desse meu aniversário de desamizade com minha amiga, ao qual me referi como um rompimento, mas pelo qual não sinto raiva, desprezo ou qualquer sentimento ruim.

Pelo contrário, sinto carinho por uma amizade incrível, que tem uma história marcante, que reúne uma série de situações memoráveis, repleta de sentimentos e coisas belas. Uma amizade belíssima que, por necessidade, findou-se. 

Pois é, deixar pessoas é preciso, mas amar as pessoas que deixamos, ou as que levamos conosco, também é.



3 de janeiro de 2016

Um encontro com a doença


E, de repente, ela chegou. Sorrateiramente, lentamente, disfarçadamente.

Deu um sinal aqui, outro lá... Não que ela quisesse ser percebida. Não, de modo algum. O trunfo dela está em não se fazer perceber, ainda que dê seus sinais enquanto se instala.

Hunf! E eu lá sou sujeito de parar para prestar atenção em sinal? Termino isto antes, resolvo aquilo primeiramente, deixe-me viver isto aqui intensamente; ora, são prioridades! Hoje, penso em como ela deve ter se divertido com o fato de ser ignorada.

Mas, como ela pode se deleitar por não ser notada? Por não ganhar atenção? Pois, foi assim que ela ganhou meu corpo, me tomou por completo e foi tirando de mim toda aquela atenção que eu lhe negara antes. 

Agora, ela é notável. Veja seus sinais, agora claros e evidentes. Como eles gritam, como eles tiram minha paz, meu sono, meu sonho. Encaram-me de frente todos os dias e, ousados, ameaçam minha resiliência, minhas crenças, minha fé, minha força (a física e a da alma).

E ela segue se divertindo, avançando inexoravelmente. Desgraçada! Preciso de ajuda, penso. Busco ajuda. Mas, em quem confiar? Ando de um lado para o outro, perdido, confuso, preocupado. 

Chego a cometer o erro de achar que estou frente a deuses. Ou, pelo menos, semi-deuses. Ué, não estou indo buscar a solução para ela? Não são eles que a matam? Não, engano. Eles são tão humanos quanto eu. Erram como eu, tem pré-conceitos (e preconceitos) como eu, falsas seguranças como eu. 

Então, aguardo. Algo há de acontecer, já que estou buscando ajuda. As coisas vão melhorar, não vão? Tem de melhorar... E ela avançando, cada vez mais poderosa, cada vez mais misteriosa, derradeira. 

Algumas vezes, chegamos a conversar. Senti-me num encontro com meu maior inimigo. Procurei olhar em seus olhos, mas ela não tinha face. Tentei questioná-la, argumentar e esbravejar, mas ela não tinha voz. Que ser é este, meu Deus?!

De onde você veio? Por que está aqui? O que eu fiz... Vamos, diga-me! O que eu fiz para merecer a sua presença em meu corpo, em minha vida? Estou seguindo em frente, tenho tantas batalhas a vencer, derrotas a reverter e vitórias a comemorar. Por que você chegou para me impedir? Desde quando está aqui, instalando-se? Intrusa!

Nada. Nenhuma reação ao meu enfrentamento. Silêncio. Um silêncio vencedor e astucioso. Mas, óbvio, para que me responder? Ela tem o jogo todo ao lado dela. E dá sinais derradeiros dessa verdade amarga, tirando-me, então, uma das minhas dádivas mais preciosas. 

Não pode ser verdade! Até isso? Não acredito que cheguei a este ponto! Vão se embora a rotina, os horários, a autossuficiência. Reflito, espero, aquiesço. Então, oro. Peço a Deus misericórdia, força, proteção. Isso ela não pode me tomar, não o meu espírito.  

Pelo menos o meu espírito está a salvo, já que ela parece estar me privando dos meus cinco sentidos pouco a pouco. O que pode ser tão poderoso assim? Como pode ter tanto poder destrutivo? Quem é você? E, então, a resposta chegou.

E com ela a assustadora revelação de que fui eu mesmo, eu e mais ninguém, que a convidei para entrar e se achegar em meu corpo, em minha vida. Agora, ela fala comigo, gesticula, expressa-se, sempre com um ar vanglorioso. "Sou uma velha conhecida, lembra-se? Há tempos nos conhecemos."

Não, não pode ser. "Desde que nos encontramos pela primeira vez, você gostou tanto que me encontrou várias vezes depois". Não, como eu pude? "E, em determinado momento, você me convidou para entrar". Quando? Quando fiz isso? Preciso descobrir! "É inútil. Você não saberá, não tem controle, mal sabe quantas vezes me encontrou, é negligente".

Este diálogo se seguiu por mais um tempo. Um mês ou mais, talvez, não sei precisar. Assim como não sei precisar quando a convidei para entrar, quantas vezes a encontrei, quantas vezes me deixei levar. Estúpido, fraco, inconsequente. Persisti no erro, mesmo sabendo que era um erro, e ela entrou.

Culpo-me até hoje por tê-la deixado entrar. É certo que muitas delas entram sem serem convidadas, mas esta não. Esta se achega conforme deixamos. E eu, errôneo, deixei! Um semi-deus me disse para esquecer e ficar com a cuca fresca. "Vida que segue". Outro, quis me especular. E um último me tratou, sem grandes rodeios.

E, então, ela foi embora. Já havia vencido aquela batalha mesmo. Foi saindo, vitoriosa, vagarosamente. Recolhendo seus sinais lentamente, devolvendo meus cinco sentidos, permitindo minha recuperação.

E, hoje, o que me resta é a sua indiferença, a culpa e o medo. Medo de que eu a encontre novamente. Medo de que eu caia no erro, maldito erro, de deixá-la entrar novamente. Medo de, mais uma vez, errar. É o que sou, um ser humano medroso, com medo de si mesmo.