27 de maio de 2016

A força que vem das cicatrizes



Era uma tarde fresca em Campinas, eu respirava a brisa que agitava as folhas das muitas árvores ao nosso redor. Adoro as ruas de Barão Geraldo. Eu estava encostado no carro, junto com meu pai e meu primo, ao lado do Centro Infantil Boldrini. Enquanto admirava todo aquele cenário, chamou-me a atenção o caminhar de uma garota, apoiada em suas muletas, pela calçada à minha frente.

Ela andava com dificuldade. Seus braços pareciam não sustentar com tanta firmeza o corpo robusto que precisavam levar adiante se equilibrando em duas muletas nas irregulares calçadas que rodeiam o Boldrini. De repente, ela se desequilibra, sua única perna apoiada no chão vira e a faz encostar num carro estacionado por perto. Suas mãos soltam as muletas e tentam segurar, em vão, na porta do carro. O corpo da menina vai deslizando e, então, cai no chão.

Com o barulho do tombo, a primeira reação de meu primo foi correr para ajudar a garota a se levantar. Mas, uma mulher, que me pareceu ser a mãe dela, estava mais próxima e chegou antes dele para oferecer amparo; ao que, em resposta, recebeu um "me solta, eu me levanto sozinha, deixa!" como resposta da garota caída, que, agora, apoiava nas muletas para se levantar. A reação negativa dela fez meu primo voltar atrás.

Depois dessa cena, fiquei pensando no porquê da menina ter recusado ajuda para se levantar. Afinal, por que se sentir ofendida com uma mão estendida para te levantar do chão? Outro dia, porém, quando eu, então, usava muletas, ao passar pela área de casa numa tarde chuvosa deixei que um escorregão me jogasse de joelhos no chão. Meu pai rapidamente se abaixou para me ajudar, e minha reação foi "pode deixar, eu me levanto sozinho". A mesma resposta irritada. A mesma reação diante de uma ajuda.

A partir do meu tombo, pude perceber o que incomodou a garota que eu vira cair. Entendi o sentimento dela. Quando perdemos o chão, a sustentação de todo nosso corpo, não levamos apenas um tombo, mas perdemos também a nossa própria segurança. Juntamente com o cair, vai embora toda nossa autossuficiência. Ficamos vulneráveis. Daí a necessidade de recusar ajuda, pois a primeira preocupação é não querer demonstrar fraqueza. Contudo, será que somos tão fortes assim? 

Essas e outras situações já me fizeram refletir, por vezes, em como a dor física transforma o ser humano; e o transforma de maneira completa! A dor física parece ter a capacidade de arrancar de nós todas as nossas certezas sobre a vida. Todas as seguranças que construímos dentro de nós, e para nós mesmos, parecem ser atingidas de maneira profunda, fazendo-nos questionar tudo ao nosso redor.

Tal questionamento é o tipo de pensamento que não costumamos nutrir no dia a dia sempre tomado pela nossa certeza de que (aparentemente) temos o controle de tudo ao nosso redor. Trata-se do questionar por que tal dor nos atinge, ter medo de sua causa, aflição do esperar a mesma ir embora. É a terrível sensação de encarar um futuro incerto.

Esse é o sentimento que nos toma quando nos encontramos numa cama de hospital. Ou, ainda, quando simplesmente caímos e nos deparamos com a verdade de que não somos tão autossuficientes quanto pensamos. Entretanto, a vida tem a beleza de nos permitir regenerarmos. A garota que eu vi naquele dia, provavelmente, levantou-se outras vezes e abandonou as muletas. Assim como eu deixei as minhas muletas de lado alguns meses depois daquele tombo e nunca mais precisei delas.

O que fica, depois disso, são as cicatrizes. As marcas que a dor física nos deixa, talvez não como castigo ou herança ruim, mas como lembrança do que já superamos, daquilo que já fomos capazes de vencer. As cicatrizes, nesse sentido, têm a incrível capacidade de nos tornar mais fortes. Mais do que qualquer fortalecimento que possamos buscar, é superar uma debilidade e ganhar uma cicatriz que nos fortalece de verdade.

E, além de nos fortalecer, são também as cicatrizes que nos dão maturidade. Afinal, a primeira coisa que fazemos ao superarmos uma dor física é esquecê-la. Jogamos a sensação de dor para o inconsciente e nunca mais visitamos este local para revivê-la. Porém, ao olharmos para uma cicatriz, lembramos que por ali passou uma dor. Daí vem a maturidade, pois encaramos nossa autossuficiência com mais ceticismo. Pisa-se com mais cuidado, mas também se caminha com mais força.  

Eu não sei se você tem uma lembrança como essa aí contigo. Tampouco sei a quem você se apegou no momento em que suas certezas foram arrancadas; se a Deus, ao universo, à pessoa amada que estava próxima. Mas, uma coisa é certa, seja a sua cicatriz uma marca visível ou não, possa você tocá-la ou não, há uma força que vem dela. E essa força não se perde nunca, ainda que, às vezes, a sua muleta ceda e o cair seja inevitável.