15 de agosto de 2021

Eu me tornei

 


(Sociedade dos poetas mortos - 1990)


A imagem da capa de "Feliz Ano Velho", de Marcelo Rubens Paiva, pairava sobre o telão. Era uma quente noite de verão, logo no início de março, daquelas que fazem essa estação se despedir em grande estilo. A classe estava abarrotada de aluno, um clássico de começo de ano em um cursinho popular. O ventilador, ou o que restou dele, não dava conta de aliviar o mormaço de dentro da sala. A ferrugem das carteiras, as bordas quebradas da lousa e os estilhaços da janela pareciam acentuar ainda mais o calor do nosso cenário.

Mesmo assim, alguns alunos se dispuseram a participar da reflexão a que eu lhes convidara: se você tivesse que se apresentar não como pessoa, mas como um livro, que livro você seria? Eu comecei me apresentando para eles como "Feliz Ano Velho", leitura que chegou até mim num dos momentos mais delicados de minha vida, por meio da mão de outra pessoa, e que me deu forças para atravessar as barreiras, muitas vezes intransponíveis, da doença. Uma de minhas alunas, então, levantou a mão e começou a falar.

Lembro-me claramente dos seus olhinhos apertados nos contando a sua luta contra a depressão. Já me esqueci de qual livro ela era (ou talvez meu inconsciente tenha tomado à frente naquela hora), mas jamais me esqueci da coragem daquela menina compartilhando, com uma sala com mais de quarenta pessoas, como era a sua luta. O alívio que se cortar causava, a tentação de findar a própria vida, os dias cinzas. Logo, as lágrimas vieram. E tudo que pude fazer para acolhê-la foi caminhar em direção à sua carteira e lhe estender a mão. Ela me segurou forte, mas também agradecida.

Lá do fundo, outro aluno se manifestou. Disse conhecer exatamente o mesmo enfrentamento. Inclusive, compartilhou conosco que as tatuagens feitas ao longo da vida ocuparam a função de lhe proporcionar o alívio que a dor de se cortar causava. E num misto de extrema admiração pela coragem desses meus alunos e de coração agradecido, a conexão que criamos ali foi minha força propulsora que me levou até o fim do ano, para vê-los, mais tarde, tomando seus devidos lugares nas universidades deste país.

Fiquei pensando em como aquele momento foi fundamental para despertar o que havia de melhor em mim.   

No começo do ano seguinte, naquela passagem fatídica da primeira para a segunda fase dos vestibulares, meus alunos se reclusavam no famoso bitolódromo da nossa universidade. Passavam dias e noites a perder de vista lá. E mais do que um local solitário de estudo, parecia-me que eles queriam estar fisicamente lá, como que se estivessem, desde aquele momento, tomando posse do lugar que seria deles um dia. Entre as idas e vindas dos nossos estudos, sempre chegava algo para me chamar a atenção. Uma foto no grupo com a frase "Wagner não dá nota 10" escrita na lousa do fundo. Um apelido de coach quando cometi o deslize de usar a palavra mindset num plantão. Mas, nada disso se sobrepôs à demonstração que recebi pessoalmente.

"Se eu passar no vestibular neste ano, prometo que te dou um abraço". Ganhei essa frase despretensiosamente, no final de uma conversa no banheiro enquanto lavava as mãos. Nem me lembro do que respondi (ou, talvez, mais uma vez o inconsciente agiu), mas me lembro da justificativa que veio em seguida. "E olha que nem meus pais ganham um abraço meu há muito tempo". Ali, entendi quão valiosa era aquela promessa e tomei dimensão da importância de que o meu trabalho desse certo. Assim como deu.  

Fiquei pensando em como a promessa de um abraço pode mudar tudo.

Contudo, nem sempre todos alcançam o seu sonho de aprovação. É gostoso, sim, reencontrar algumas carinhas conhecidas ano a ano, mas mais gostoso ainda é quando essas carinhas viram lembrança e vão se tornar presença lá no ensino superior. Dessa vez, o que me tocou veio justamente de um lugar onde não teve aprovação. Mas, lá encontrei algo tão valioso quanto. "Eu vim de lá, eu vim de lá, pequenininho. Mas eu vim de lá, pequenininho. Alguém me avisou pra pisar neste chão devagarinho... Obrigada, Wagner, porque você me ajudou a pisar devagarinho".

Essa minha aluna canta tão bem. E a minha surpresa não foi só receber uma mensagem que, do nada, torna-se cantada, mas também por entender que a gratidão não reside apenas na aprovação, ela também está presente na trajetória. Algo acontece ao longo do percurso, andando devagarinho até o dia do juízo final que impera sobre os alunos que têm seu futuro colocado em jogo em cinco horas de prova. O ser humano abre a sua mente, enxerga além, transforma-se. Como ouvi de outra aluna em outra ocasião, "professor Wagner, hoje estou triste porque descobri na aula de ontem que o meu trabalho é um tipo de subemprego".

Fiquei pensando em como é importante ensinar a andar devagarinho.

A presença da gratidão no percurso, que é tão importante quanto o final dele. A presença da gratidão no final, que na verdade é só o começo para os meus alunos. Tudo isso marca, porém a maior marca é aquela que fica para sempre. "Já assistiu um filme chamado Sociedade dos Poetas Mortos?". Assim como uma frase cantada inesperada ou a repentina oferta de um abraço, essa pergunta me surgiu de repente no meio de uma conversa. E eu havia cometido o pecado de não ter visto o filme ainda, mas disse adorar o protagonista. "Quando eu assisti esse filme, lembrei de você e pensei: o Wagner passa uma mensagem parecida sobre o conhecimento".

Um tempo depois, já envolto pelo hábito trazido pela pandemia de assistir a diferentes filmes às sextas-feiras à noite, finalmente vi o que era o tal grupo de alunos que se denominavam como poetas mortos. Ali, eu entendi a grandeza da alusão feita pelo meu aluno. E, hoje, sempre que abro o ano letivo de minhas aulas, coloco a imagem dos alunos atrevidos em pé nas suas carteiras e convido, aqueles que quiserem, a contarem comigo para subirem nas suas próprias mesas.

Fiquei pensando em como é necessário subir nas nossas carteiras. Fiquei pensando, refletindo, sentindo. Fiquei. E então me tornei.


2 comentários:

  1. Parabéns filho pelo seu profissionalismo sinto muito orgulho de você, te Amo .

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  2. leitura mt boa pra uma manhã de domingo, suas palavras são mt carinhosas!! infelizmente (ou felizmente) ainda não vi sociedade dos poetas mortos, mas essa preza me despertou interesse!!!

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